Desobedecer à distopia, alimentar a esperança, aproximar a eutopia

 

David Fernández Ramos

«Sejam lúcidos, sejam firmes.

Estejam unidos.

Respondam à perseguição com esperança.

Respondam ao medo com a união».

Pedro Casaldáliga

Não faz muito tempo, em 2014, um relatório da NASA - pouco provável de  estar à esquerda de Deus - mostrou que, para a civilização industrial capitalista, como a conhecemos, pode lhe restar duas décadas, como resultado de sua própria capacidade de degradação, devastadora e predatória. Citava  três motivos básicos: a ganância carniceira das elites mundiais, o colapso ecológico e as crescentes desigualdades sociais, que estão a caminho da ingovernabilidade.

Foi-nos dado o troco no mostrador. Não é mais o que queremos construir, mas, e acima de tudo, o que queremos evitar com urgência e quantos desastres para serem detidos. A vitória mais sonhada do capitalismo foi nos submeter a um regime geral de indiferença, não queremos acreditar no que já sabemos, porque isso implicaria começar a desfazer o que fazemos, sair da zona mais que cúmplice de conforto e questionando quase tudo, começando por nós mesmos. Por sua vez, a vitória mais sonhada do neoliberalismo foi ter enfraquecido, esculpido e destruído o vínculo social comunitário.

Há muito tempo nos avisaram da loucura que era buscar recursos infinitos em um mundo finito - o relatório Meadows, em 1972 - e que estávamos desafiando os limites da biosfera e as leis da entropia. A sobrecarga ecológica, já a temos aqui. Faz tempo que nos avisaram que esta revolução permanente contra os limites que é o capitalismo - Polanyi nos dizia em A Grande Transformação - acabaria comercializando tudo, atropelando a vida.

Mais. Porque tudo sugere a ambivalência radical da condição humana. Em síntese extrema, capaz do terrível e do sublime: inventa um holocausto, como inventa a penicilina. O conto que nunca se acaba. Em suma, visto que em toda comunidade humana sempre haverá dois tipos de pessoas inteligentes, como Jorge Riechmann diria. Aqueles que querem mandar em tudo, a quem chamaremos de tiranos vocacionais e, aqueles que querem ficar com tudo, a quem provisoriamente qualificaremos como ladrões estruturais. Com frequência são os mesmos, não pensem nisso. E se não são os mesmos, eles vão de uma vez e coordenados. Contra uns e outros - contra tiranos e ladrões - existem apenas duas ferramentas frágeis para reverter a hybris do poder do poder e a do poder do dinheiro: a democracia política e a ética da decência. Por isso ambas cotizam tão pouco em um mundo feito mercado: meio negócio, meio quartel.

Pegada classista, pegada ecológica, pegada patriarcal. Os rastros que nós vamos deixando. O que fazer então na outra agenda, a urgente agenda democrática, social, feminista e ambiental que deve ser reconstruida sempre recomeçando de novo. O que fazer quando já sabemos que a única coisa que garante que tudo continuará igual - isto é, muito pior - e nada vai acontecer é não fazer nada, não mover um dedo e olhar para o outro lado? Uma revolução, dizia Walter Benjamin, é basicamente um freio de emergência contra o poder do poder e o poder do dinheiro.

Rua da Memória, esquina da América Latina, nas páginas deste Livro-Agenda Latino-Americana, que é uma viagem sem fim ao longo das estradas do milharal, onde novamente voltam a concorrer Violeta Parra, Roque Dalton ou a subcomandante Ramona, onde voltamos para convocar as Comunidades de Base, para cada um das “costas molhadas” e a Unidade Popular de Allende, devemos lembrar mais do que nunca, que o que nos fazem esquecer todos os dias é que somos ecologicamente dependentes - dependendo da natureza para sobreviver - e interdependentes - dependendo uns dos outros para conviver.Mostrar mais

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O cooperativismo pós-capitalista contra a desigualdade, o feminismo emancipatório contra todas as formas de submissão, a fraternidade contra o racismo, o ambientalismo contra a destruição dos alicerces da nossa vida, o municipalismo contra os centros distantes do poder ou a socialização da cultura. O programa está escrito há anos. Só temos que construí-lo juntos. Agora que já sabemos que haverá, sob o capitalismo, uma saída democrática, feminista, ecológica e ética, a primeira coisa que deve ser derrubada é o regime ininterrupto da indiferença, que nos torna expectadores acríticos, usuários dóceis e consumidores compulsivos. Trabalhar com esperança, desconstruir todos os dias os horrores do dia-a-dia e resistir à frustração, apesar dos muitos motivos cotidianos que a alimentam, é a chave da abóboda. Não se calar, não desfalecer, não desistir. Contra tanta distopia reinante, e várias utopias fracassadas, construir eu-topia entre todas e todos: o lugar em si, que diria Casaldáliga, onde nos encaixamos e encaixaremos todas e todos. Esta é a tarefa. Hoje. Agora. Aqui.