Deus bate na porta
Eduardo Hoornaert
Os seres humanos procuram contato com Deus, o grande mistério do universo. Dos mais diversos modos: uns vão à missa ou ao culto, fazem orações e promessas, escutam as falas de padres ou pastores; outros rezam em casa, pedindo incessantemente por saúde e bem-estar, felicidade e prosperidade; enquanto outros ainda procuram Deus na natureza.
Mas a Bíblia fala de outra procura: Deus procura contato com o ser humano. Já no capítulo 12 do Livro Gênesis, lemos que Deus procura se comunicar com um proprietário de terras na cidade de ‘Ur dos Caldeus’ (atual Iraque, próximo ao Golfo Pérsico), chamado Abraão. Ao longo dos livros da Bíblia, Deus procura contato com sucessivas personagens, numa longa sequência de sagas, narrativas, salmos, provérbios. Finalmente, no último livro, o Apocalipse, todas essas tentativas se resumem nas seguintes palavras: Estou chegando e bato na porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa (Apoc., 3, 20).
O homem procura Deus e Deus procura o homem. Os dois se encontram? A impressão que temos, ao consultar a história, é: não. Deus e o homem não se encontram. Pelo menos, na maioria dos casos. Um encontro bem sucedido é tão excepcional que está anotado em livros sagrados. O que predomina é o desencontro.
Como entender isso? Voltemos por uns instantes à história de Abraão. Ele vive tranquilo em Ur dos Caldeus, cuidando de sua família e de suas terras. Deus o chama e diz: ‘Sai de sua terra e vá para a terra que eu te indicar’. Prontamente, Abraão abandona sua terra e se põe a caminho. Faz-se andarilho, espera encontrar a terra que Deus lhe prometeu. Passa por mil dificuldades, mas não abandona o chamado de Deus, impulsionado pela esperança de encontrar, lá adiante, uma terra melhor, uma vida melhor. Eis a saga de Abraão, contada nos capítulos 12 a 25 do primeiro livro da Bíblia. Resumindo: Abraão troca a certeza pela incerteza, a estabilidade pela andança, a posse pela esperança. A esperança é seu alimento de cada dia. É dela que Abraão vive e é essa
esperança que constitui sua mais preciosa herança, para judeus, cristãos e islamitas. Até hoje.
A história de Abraão contém outra lição: na maioria das vezes, o homem, ao dizer que procura Deus, na realidade procura outra coisa.
Temos aqui a resposta à nossa pergunta: por que é tão raro o homem se encontrar com Deus? É que ele quer segurança, estabilidade e prosperidade, enquanto Deus propõe insegurança, andança e esperança. Em vista de algo de supremo valor, que Jesus chama ‘reino de Deus’.
Poucos têm a ousadia de abrir a porta à Deus. Os profetas de Israel ousaram se abrir a Deus. Depois, no cristianismo, apareceram os apóstolos e os santos. Paulo muda de vida após ouvir falar em Jesus. O mesmo acontece com o diácono Estêvão, o primeiro mártir cristão. E daí se abre um leque de homens santos e mulheres santas. Alguns, após deixar Deus entrar em suas vidas, criam movimentos, alguns dos quais perduram até hoje. São Bento funda os beneditinos; Francisco de Assis, os franciscanos; Domingos de Gusmão, os dominicanos. Tereza de Ávila anda incansável pela Espanha a fundar casas de mulheres carmelitas. Inácio de Loyola é fundador dos jesuítas; Vicente de Paula, dos lazaristas. A lista é longa.
Aqui, na América Latina, tivemos o dominicano Bartolomeu de las Casas, que, já no século XVI, denunciou as crueldades cometidas contra as populações originárias destas terras. Uma figura solitária na lista dos missionários que atuaram neste continente. Santos formam uma pequena minoria, sempre.
Atualmente temos nossos santos ‘mestres da humanidade’: Mahatma Gandhi na Índia, Nelson Mandela na África do Sul, Martin Luther King nos Estados Unidos, Helder Câmara no Brasil. Um hindu, um anglicano, um batista, um católico. Pessoas que inspiram por abrir a porta e deixar Deus entrar, nos mais diferentes contextos. Assumem o risco e sofrem as consequências. São poucos, mas nos apontam os principais desafios que a humanidade enfrenta hoje: Gandhi significa descolonização; Mandela e Martin Luther King significam a luta contra discriminação racial; Helder Câmara simboliza a luta contra a pobreza, que assola mais da metade da população mundial. Todos combatem a voracidade do grande capital.
Deus não bate só na casa de cristãos. Ele aguarda igualmente à porta de hinduístas, budistas, confucionistas, islamitas. Assume as mais diversas figuras. No Brasil, Deus aparece nas figuras de Ajuricaba, Zumbi, Sepé Tiaraju, Antônio
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Conselheiro, Marçal Guarani, Irmã Dorothy, Jaime Wright, Milton Schwantes, Pedro Casaldáliga, etc.
Santos e santas aparecem em cada época, em cada país, em cada região, em cada religião. Pela boca e pela vida desses santos e dessas santas, Deus se comunica conosco. Por meio deles e delas, Ele nos instiga a reconhecer Lázaro na porta do publicano rico, a enxergar o desvalido à beira do caminho, como o bom samaritano.
Não se trata de ir a Deus, mas de deixar Deus entrar em nossa vida. Ele está perto e bate na porta. Está mal vestido.
Deus não força a porta, não quer entrar a pulso. Ele respeita a liberdade da gente. Entre tantas criaturas que Ele criou e continua criando, só uma é dotada de liberdade: o ser humano. Isso é maravilhoso, mas, ao mesmo tempo, arriscado: a criatura humana pode usar sua liberdade para destruir os planos de Deus e levar a criação ao desastre. Tudo pode terminar em fracasso. É por isso que o Deus, que espera na porta, é um Deus preocupado. Tudo pode terminar bem, mas pode igualmente terminar mal.
Do lado humano também, não faltam riscos: abrir a porta a Deus significa assumir problemas e tomar posição política, diante de roubo de terras, escravização de indefesos, guerras ‘em nome de Deus’. Abrir a porta exige ousadia e posição política. Sabendo de tudo isso, Deus espera pacientemente à porta, até que o homem lhe dê permissão de entrar. Mas quando entra, é para valer.
A história da humanidade é a história da vinda de Deus em vidas humanas, mas também da recusa de Deus por parte de seres humanos. A escolha é nossa, é pessoal. Lembre-se, amigo, amiga: ninguém pode abrir essa porta por você. Só você mesmo.