Dimensão político-ecológica do feminismo
Ivone Gebara
Uma breve reflexão sobre a dimensão político-ecológica do feminismo nos convida a reconhecer a distância entre nossas reflexões teóricas e o cotidiano de nossas vidas, entre nossos sonhos e a precária realidade do viver. Em meio à luta diária, algumas pessoas fazem dos acontecimentos e suas interpretações seu material de reflexão. Estas pessoas têm uma função social especial que é discernir até onde nos conduzem nossos comportamentos pessoais e coletivos e quais são seus significados provisórios no longo caminho para descobrir o sentido da vida. Elas são os exploradores, os visionários, os pensantes do mundo em geral. Ao contrário dos atletas e esportistas que mostram externamente as habilidades de seus corpos, estas pessoas mostram as habilidades do pensamento, sua gênese, suas interconexões e questionamentos. As pensadoras/es educam suas habilidades interiores para tentar entender o que está acontecendo no mundo e propor caminhos. Entram em si mesmo percorrendo caminhos árduos para exercitar seu pensamento na compreensão do que vai surgindo na vida cotidiana. Um dos movimentos nessa linha de educação do pensamento contemporâneo é o feminismo. Não é possível falar aqui de todos os aspectos do movimento feminista e de suas conquistas, por isso nos concentraremos na compreensão do aspecto político-ecológico do feminismo, a partir de uma perspectiva filosófica, o que significa abordar um entendimento a partir do que se manifesta nas relações humanas e acima de tudo, além do que é manifestado. Essa perspectiva nos faz descobrir razões e motivações que estão escondidas em nossas ações e comportamentos. Além da aparência, faz-se necessário demonstrar opressões reproduzidas e naturalizadas pela cultura nas diferentes relações sociais. É o esforço dos pensadores para encontrar conexões históricas, culturais, étnicas, religiosas, psicológicas ou outras que moldam as mulheres em um padrão histórico de submissão e os homens em um padrão de dominação. Esses padrões são interpretados e se apoiam mutuamente de tal forma que não podemos pensar em um sem pensar no outro, porque na realidade eles são o mesmo padrão com expressões diferentes. Esse padrão ou modelo tem sido criticado e tem provocado grandes mudanças em nossa maneira de ser no mundo. As críticas e novas propostas constituem o que denominamos de “pensamento feminista plural”. Nesta reflexão, queremos compreender filosoficamente algumas consequências do feminismo na compreensão das relações humanas. Também abriremos espaço para vislumbrar que a dimensão ecológica da vida está intimamente ligada à compreensão do ser humano e à revolução que o feminismo está provocando. Quando se fala em feminismo se pensa em “coisa” de mulheres que querem introduzir mudanças em comportamentos considerados normais ou naturais. Quem pensa assim se engana com relação ao feminismo crítico e às suas propostas antropológicas inclusivas. Se não fosse a partir dessa perspectiva, o feminismo correria o risco de ser só um produto de consumo, uma expressão de mulheres “loucas” exigindo só direito de igualdade com o masculino, reconhecendo nele uma supremacia justa e imitável. Mas, o feminismo crítico, sobretudo em sua vertente filosófica, introduz uma nova maneira de comprender os seres humanos em sua diversidade e em sua relação com o mundo natural no qual vivemos. Na maioria das culturas ocidentais e orientais, podemos observar que os fundamentos que garantem o funcionamento da sociedade são dados por uma tradição que, sem dúvida, podemos encontrar no pensamento masculino. Por exemplo, alguns filósofos gregos que influenciaram o cristianismo, imaginavam uma força originária imaterial, o “principio cósmico” que determinava o ser de cada coisa ou de cada ser. O “principio cósmico” da “origem” de tudo era simbolicamente masculino, pensado e afirmado por homens. As mulheres raramente eram incluídas nessas discussões e por isso eram consideradas mais próximas da matéria do que do espírito. O grau de proximidade das mulheres com o “principio cósmico” criador e organizador era muito inferior ao dos homens. O “principio cósmico” criado pela mente masculina foi se tornando imortal, infinito, eterno e foi estendendo seu domínio pela terra culturalmente, politicamente e eonomicamente. No cristianismo, este ser ou força espiritual de expressão histórica masculina foi traduzido com a expressão “Deus Pai todo poderoso”, criador e organizador de tudo o que existe. E esse mesmo poder foi atribuído a Jesus, único filho do Pai. A partir das hierarquias estabelecidas e da divisão social do trabalho, as sociedades foram separando o trabalho material do espiritual, o doméstico do público, o individual do social. Cuidar da materialidade da vida se tornou menos importante do que o pensar a vida, atividade considerada do espírito. Nobres e escravos de diferentes categorías foram se dividindo na sociedade e dividindo a sociedade entre os eleitos e os condenados a sobreviver somente servindo aos otros. O feminismo vem unir lucidamente o material e o espiritual, o individual e o coletivo, de modo que ainda que usemos estas expressões, já não lhes damos o mesmo significado. No “principio” (Big Bang) houve matéria/força vital absolutamente unidas, ou seja, matéria e espírito como expressões da mesma realidade em evolução. Na mesma linha as feministas unimos o finito da vida ao infinito de nosso desejo, tratando de superar a ousadia masculina de negar a finitude. O patriarcado masculino criou a imortalidade, o infinito, o eterno, como contraponto para sarar as feridas da precariedade da vida sem perceber, além disso, que a mesma está marcada pela rejeição de algumas e alguns do direito à dignidade. Escravos e mulheres, de acordo com as diferentes classes e etnias, eram excluídos e desrespeitados. Tão pouco perceberam que nossas vidas são interdependentes do que chamamos “natureza”, que somos parte dela, que necessitamos dela para viver e por isso é necessário cuidar dela. Essa compreensão patriarcal parcial da vida perdura até nossos días. Por isso, a novidade da antropologia filosófica feminista é de grande importância para nosso mundo. Também a antropologia feminista transforma nossa teologia cristã e nossa compreensão do humano/divino. Algumas pinceladas nos darão uma pequena ideia das propostas feministas.
O primeiro limite do ser humano é seu próprio corpo. Rodear-se de outros corpos, desejar corpos é nossa condição. Somos corpos frágeis, necessitados uns dos outros para sobreviver. Em nosso corpo tomamos consciência coletiva de uma organização social milenar a partir da qual classificamos, de forma excludente, corpos semelhantes e diferentes dos nossos. Libertamos a alguns e escravizamos a outros. Nos dominamos uns aos outros segundo nossos interesses. Quando classificamos os corpos, atribuímos diferentes valores a eles, os usamos como objetos ou os exaltamos, tornando-nos servos de nossas próprias invenções. Inclusive chegamos a criar corpos espirituais que sobrevivem à morte, que habitam nos céus e interferem na vida dos corpos terrenos que ainda não cruzaram os limites da morte até a imortalidade. Tal concepção aumenta nossa fragilidade e a irresponsabilidade de viver sem apreciar a precariedade de nossas vidas. No mundo científico e tecnológico atual já é inadimissível a separação entre o céu e a terra e a ideia de habitantes gloriosos ou condenados. Devemos rever e reinterpretar os velhos conceitos teológicos. O feminismo propõe comprender o ser humano a partir de si mesmo, não a partir de um ideal utópico proposto por um discurso filosófico ou religioso de outros tempos. Enfatiza a constituição humana em constante evolução, a história como uma confluência de vontades influentes entre si. Cada geração busca seu sentido e deixa para a próxima uma herança que está em transformação. A geração atual de feministas herdou um mundo consciente da exploração social capitalista dos pobres, das mulheres e do planeta e luta, de diferentes modos, para transformar essa situação. Não existe uma meta a alcançar, pois a história coletiva continua. Morremos individualmente, mas o coletivo em contínua evolução continua revisando e modificando suas lutas de acordo com os novos desafios. Esta análise implica uma crítica séria às utopias científicas que querem prever um ponto de chegada comum para todos. Também critica as utopias religiosas patriarcais que nos propõem um fim da história para além da história, uma vida além da história, o que serve para amortecer o caráter provisório de nossas histórias. Apela para seres fora da história real dando-lhes vida imaginária para que se encarreguem de nossas vidas. São apenas artifícios de nossa humanidade complexa quem, para acalmar as dores, ama as ilusões e se apega a elas mais que aos sofrimentos temporais e às belezas efêmeras de nossa existência. Devemos reconhecer a falta de afeto que nutre nossos corpos, as inseguranças cotidianas, as intempéries da natureza, a necessidade de proteção e calor… Por isso, inventamos amores celestiais, braços imaginários que sustentam nossas vidas… Podemos entender nossa busca por proteção, mas nesses novos tempos a troca de significados é necessária. Acusam as feministas de materialistas. Mas, o que é materialismo? O que é essa materialidade que a filosofia e a economia afirmaram e a religião satanizou? Por que temer os corpos que somos? Por que não contemplar a beleza de sua finitude? Mas, o que é realmente a vida? É esse alento em um corpo, um corpo com alento, que vai e que vem e tem medo de perder-se, desaparecer no tempo e no espaço…
Nos acusam de viver só no material da vida e na busca da sobrevivência. Assim, reduzem o alcance de nosso amor à vida, de nossas reflexões e poesia. A perspectiva filosófica feminista se situa na linha de uma transcedência ativa, renovável, historicamente experimentável e reconhecida a posteriori como valor. Esta é uma experiência histórica, comportamento, ação, que nos revelam uma humanidade maior que nosso individualismo, uma humanidade que sai do egoísmo e ganha terreno em um “nós coletivo”.
Esta transcendência ativa e renovável nos permite falar de transcendência ética e estética dentro dos limites de nossa própria imanência corporal. A transcendência não está além do corpo ou sem o corpo material que nos constitui. Não está em uma esfera celeste imaginária. Viver a transcendência é viver além do imediato e descobrir belezas ocultas em um mendigo que cuida primeiro do seu cachorro que o acompanha… é curtir a beleza de um entardecer, é escutar uma música que move as entranhas, é escrever um belo poema, é compartilhar o pão com transeuntes.
Viver a transcendência é “visitar os presos”, “vestir os que estão nus”, “acolher o órfão, a viúva, o estrangeiro”, é “dar as mãos para proteger um bosque” e “cuidar da reprodução das tartarugas”… É tudo isso vivido na imanência de nossos corpos. Algo disso é a filosofía feminista. Estamos dando somente os primeiros passos…