Direito à saúde: uma pauta de luta dos atingidos por barragens

 

José Geraldo Martins e Fernanda Portes de Oliveira

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) é um movimento nacional, autônomo, de massa, de luta, com direção coletiva em todos os níveis, com rostos regionais, sem distinção de sexo, cor, religião, opção sexual, partido político e grau de instrução.

Somos um movimento popular, reivindicatório e político. Nossa prática militante é orientada pela pedagogia do exemplo e nossa luta se alimenta no profundo sentimento de amor ao povo e à vida.

Na atual fase do capitalismo financeiro, a disputa USA X China tem dois insumos básicos no centro do jogo: o petróleo e o minério de ferro. A intensificação da exploração predatória e irresponsável dos recursos naturais em países periféricos traz consequências devastadoras para o planeta e para a humanidade.

O maior crime sócio ambiental já ocorrido no Brasil, que deixou 18 mortos identificados, um desaparecido e provocou um aborto forçado pela lama, despejou 60 milhões de toneladas de lama rica em metais tóxicos na bacia do Rio Doce. Além disto, impactou em diversos aspectos a vida das pessoas que vivem ao longo de mais 620 km de cursos d’água atingidos.

O crime da Vale em Brumadinho, em Minas Gerais, que derramou mais de 12 milhões de toneladas de lama de rejeitos de mineração contaminada com metais tóxicos, provocou uma tragédia humana sem precedentes no Brasil ceifando cerca de 270 vidas e escancarou a irresponsabilidade da Vale que montou escritórios, dormitórios, refeitórios e oficinas poucos metros abaixo de uma barragem que ela própria sabia que podia se romper.

Na sequência, o que se viu foi um clima de pânico, com outras barragens sem laudo de estabilidade, populações evacuadas, cidades condenadas ao medo e à insegurança de um rompimento iminente o que desorganizou as vidas e trouxe prejuízos e abalos individuais e coletivos, desde os financeiros até os psicológicos.

Ambos os crimes trouxeram múltiplas consequências desastrosas: impactos sociais, ambientais, econômicos, perdas de vidas humanas e animais.

Há um adoecimento generalizado pelas múltiplas perdas. A incerteza do futuro é agravada pelas táticas criminosas da mineradora Vale que, para evitar custos com as indenizações e reparações, se utiliza de todos os meios para dividir as comunidades, criminalizar os atingidos e os movimentos que os defendem, além de cooptar os representantes no executivo, legislativo e judiciário.

O sofrimento mental causado pelos crimes debilita fisicamente as pessoas agravando os problemas já existentes e abrindo caminho para que outros agravos à saúde se instalem. O aumento de mais de 60% do consumo de ansiolíticos e antidepressivos no município de Brumadinho após o crime é um sintoma palpável deste adoecimento.

Tem sido desafiador para o movimento fazer um recorte do debate da contaminação das pessoas pelos rejeitos de mineração. Ampliando o tema, temos feito a denúncia da contaminação atrelada a outras questões de injustiça mostrando que tudo isso se insere numa conjuntura mais ampla, reflexo da apropriação e exploração predatória dos recursos naturais.

Uma das táticas das empresas é a desinformação, em todos os aspectos. Elas mostram laudos para a população atingida sobre o nível da contaminação encomendados por elas próprias ou estudos de conclusões dúbias acerca do problema. Por sua vez, o Sistema Único de Saúde (SUS), subfinanciado e em processo de desmonte, não está preparado para lidar com essas situações, com falta de profissionais, equipamentos e mesmo a ausência de um protocolo de atendimento específico para as populações em risco de envenenamento crônico pelos rejeitos das minerações.

As exigências legais para análises da água potável não consideram a detecção de metais nem outros contaminantes, como os agrotóxicos, presentes nas águas servidas às populações atingidas, o que permite às criminosas afirmar que “a água está boa para ser consumida”, mesmo nas localidades onde a única fonte de água são os rios que eles mataram por envenenamento com metais.

“No início as criminosas fornecem água para as famílias, depois esquecem, e as famílias não tem condições para manter água potável para comida, banho, plantas, animais... e acabam tendo que ingerir água contaminada sem opção”, afirma uma atingida de Brumadinho.

Os atingidos(as) relatam ter medo de já estarem contaminados ou se contaminarem ao longo do tempo, porque não tem informações. E esta preocupação, somada à outras, gera ainda mais sofrimento mental.

Mulheres: vítimas de violações e protagonistas da luta

 Os agravos a saúde decorrentes da contaminação da água afligem mais as mulheres, enquanto grupo social que majoritariamente desempenha as tarefas domésticas. O adoecimento dos outros membros familiares representa mais uma sobrecarga de trabalho das mulheres que também realizam a execução de tarefas relacionadas ao cuidado da saúde dos demais familiares.

Em depoimento, as mulheres atingidas pela Barragem Casa de Pedra, que pertence a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), situada na cidade de Congonhas, Minas Gerais, afirma que os filhos não querem ir para a escola porque a barragem pode romper, além de não dormirem à noite e não assistirem televisão porque viram muitas cenas de desespero das famílias atingidas de Brumadinho e pensam que pode acontecer a mesma coisa com eles. Mulheres choram por causa de seus filhos, trazendo para elas sofrimento e traumas. Aumentam em toda a cidade os casos de ansiedade e depressão.

A partir deste debate, o MAB tem buscado diagnosticar as causas e propor pautas de luta para que os empreendedores se responsabilizem pelos prejuízos causados pelos crimes e ameaças de novos crimes, na defesa da vida, dos direitos, da saúde e da água enquanto direitos universais da pessoa humana.

Agimos em múltiplas frentes com a participação ampla das mulheres atingidas, organizando as comunidades nos territórios atingidos, promovendo o empoderamento na luta pelos direitos, e denunciando à sociedade os crimes que se perpetuam e se repetem cotidianamente nos territórios dominados pela mineração.

Além disto, nosso esforço é de atuar em conjunto com as instituições de Justiça para dar voz aos atingidos e atingidas de forma que as tratativas jurídicas tenham sempre a participação das populações atingidas e estabelecendo parcerias que tragam informações, benefícios e resultados para as comunidades atingidas

Para potencializar este esforço coletivo de luta é preciso ampliar o debate para além da questão das barragens para que o conjunto da sociedade perceba que os crimes estão sempre inseridos em um contexto bem mais amplo e complexo.

No mesmo sentido, é preciso construir bases legais mínimas como a aprovação de projetos de lei como a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (PNAB) e as Políticas Estaduais de Direitos das Pessoas Atingidas (PEAB), que garantem bases mínimas para a luta e a pressão popular.

Para garantir que a saúde seja atendida como uma pauta garantida pelo Estado, buscamos reafirmar o SUS como uma política pública, garantindo-o como universal e integral aliando o direito à saúde a outros direitos como educação, moradia, alimentação, emprego e renda.

Para tanto, as empresas criminosas devem financiar toda a estrutura que o SUS precisa para ser ampliado, para cuidar das demandas dos atingidos. Elas devem custear os exames de monitoramento das pessoas atingidas com metais ou outros contaminantes, como parte das compensações coletivas pela instalação do empreendimento, no âmbito do SUS e sob controle dos atingidos.

Uma pauta tão ampla e relevante somente sairá do papel com organização de base, clareza dos objetivos de longo prazo e luta permanente, que tem, nas mulheres, sua principal força de motivação e esperança, e este tem sido o esforço do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB).