Direito humano à água, já!

Direito humano à Água, já!

Víctor Viñuales


A comunidade internacional demorou 62 anos para se dar conta de que ter água boa e saneamento é um Direito Humano. Quando aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, este direito não foi contemplado. Em 2010, em iniciativa promovida pelo governo da Bolívia e apoiada pelos governos da Alemanha e Espanha e muitas organizações sociais do mundo, as Nações Unidas finalmente corrigiram esse erro: sem água boa e saneamento... toda a vida morre.

Por que demoramos tanto para incorporar essa compreensão? Que cegueira a nossa, que não percebemos que o acesso à água boa é o direito “fundante” de todos os demais... Como podemos aceitar que, no século do Google, haja mais de 884 milhões de pessoas que não têm acesso à água potável e mais de 2,6 bilhões sem acesso a saneamento básico? Sem água boa é muito difícil exercer a liberdade de expressão, de associação... porque os dias são cheios de diarreias, parasitas e morte.

As Nações Unidas fornecem alguns números quanto a este direito, como por exemplo: cada pessoa precisa de 50 a 100 litros de água por dia para satisfazer suas necessidades básicas e o custo para este direito não deveria superar 3% dos rendimentos da unidade familiar (hoje em vários subúrbios de Jacarta e Nairóbi, os pobres pagam de 5 a 10 vezes mais pela água que aqueles que vivem em regiões com rendimentos mais altos); o tempo empregado para buscar a água não deveria exceder 30 minutos e sua fonte não deveria estar situada a mais de 1.000 metros...

Sem água não há educação. Mais de 443 milhões de períodos escolares são perdidos nas escolas no mundo empobrecido porque crianças e adolescentes passam muito tempo indo e vindo com latas d’água na cabeça. A urgência da água relega outras prioriedades, que se tornam “luxos” prescindíveis.

Sem água decente não há desenvolvimento econômico. Os restaurantes instalados em meio a uma população sem água potável serão focos de contaminação e, ao invés de atrair turistas, irão repeli-los. Não pode haver nenhuma atividade econômica agroalimentar consistente sem acesso à água potável.

Sem água decente a vida em seu conjunto é árdua. Muitas jovens, por exemplo, sofrem violência em seus trajetos da casa às fontes d’água. A distância média que as mulheres na África e na Ásia percorrem para coletar água é de 6 km.

Muita gente pensa que se em um país há pessoas sem acesso à água é porque há pobreza. Isso é uma meia-verdade. Há países com recursos econômicos para fabricar bombas atômicas, como o Paquistão, mas não para garantir o acesso à água potável e ao saneamento para toda a população. Que as nações garantam o Direito Humano à água é, sobretudo, um assunto prioritário na política pública.

Mas, a falta de prioridade não é só dos governos. Muitas vezes, a própria população não a exige com a assertividade necessária e dá prioridade a outras reivindicações menos fundamentais... Neste caso, a cegueira dos governantes e dos governados caminham juntas, e o encadeamento de despropósitos na política pública se amplia.

Devemos falar, na verdade, do Direito Humano ao saneamento e à água. E é importante inverter a expressão usual porque, ou conseguimos um entendimento da revolução do saneamento ou vamos contaminar todos os aquíferos e os rios do mundo. E sem rios em bom estado ecológico não há nenhuma forma de garantir o acesso à água potável à população. O saneamento e o acesso são indissociáveis.

O reconhecimento da importância do saneamento exige obter, por assim dizer, um alongamento moral. Os que vivem rio acima muitas vezes não mostram empatia por aqueles que vivem rio abaixo. Ou conseguimos nos conectar com as situações dos que vivem longe de nós ou não melhoraremos a saúde de nossos rios e, por consequência, o acesso à água boa das populações que vivem rio abaixo, a imensa maioria, vai ser difícil.

Muitas vezes, os prefeitos querem resolver o problema do acesso à água potável e, muito frequentemente, não se empenham na solução do saneamento básico. Eles entendem que tal solução beneficiaria outras populações e outros seres vivos (os peixes), que não votam em prefeito. Assim, o saneamento é a política esquecida. Os verdadeiros beneficiários não votam. Não têm a oportunidade de serem consultados.

Outro problema grave no desafio de tornar efetivo o Direito Humano à água é a sustentabilidade das infraestruturas que são criadas. Muita gente, entre as quais autoridades públicas, vive deslumbrada pelo que é visível, o “inaugurável”, o fotografável: as obras de concreto e os canos! Esse fascínio pelas obras – muitas vezes necessárias – faz com que não se dê a devida importância ao software da água: a sustentabilidade financeira dos serviços que são criados, a consciência e o compromisso da comunidade com os investimentos realizados, a capacitação da comunidade para usar eficazmente os serviços de água e saneamento...

Em muitas infraestruturas de acesso à água potável ou de tratamento de água, passam-se dois anos e não funcionam! É um fracasso coletivo e significa tirar recursos econômicos, sempre escassos. Manter as infraestruturas é uma tarefa que não empolga a muitos na América Latina ou na Espanha, mas é crucial.

Frequentemente há uma grande confusão quanto à sustentabilidade dos serviços de abastecimento e saneamento. Às vezes, ouve-se discursos simples: se a água é de todos, é um bem comum e também um Direito Humano... deve ser grátis. Grave erro. Claro que os poderes públicos devem garantir que ninguém se veja privado do acesso ao consumo básico de água por falta de recursos econômicos; ao mesmo tempo, é necessário também assegurar a sustentabilidade financeira dos serviços de abastecimento e saneamento; senão, acabarão entrando em colapso. Por outro lado, sempre é necessário criar tarifas que incentivem um uso racional e eficiente da água que penalize o desperdício.

Sempre procuro falar da água “dente”: água boa, água potável... E qualifico a água porque muitas vezes instala-se infraestruturas de acesso à água... que trazem ao interior das casas... água não potável! É necessário realizar um exame prévio da qualidade da água, bem como o controle e tratamento da água que se traz nas casas. Se não fizermos isso, não estaremos garantindo o Direito Humano à água; estaremos enganando-nos e enganando aos outros.

Em muitas ocasiões, os governos não garantiram o acesso à água potável à população, tampouco as empresas, mais preocupadas com seus cálculos de lucro. Mas a necessidade de beber é imperativa. Por isso, as zonas rurais e periferias da América Latina estão cheias de iniciativas comunitárias, auto-organizadas, para, através da ajuda mútua e a cooperação nas comunidades, coletar recursos, trabalhos e anseios para conseguir tomar água cotidianamente.

Em muitas ocasiões o desafio tem uma boa resposta, a água é boa, o serviço sustentável economicamente, a preços razoáveis, oferecido por 24 horas... Outras vezes, algumas destas condições não são satisfeitas e se distribui água contaminada, ou há cortes frequentes, ou o preço final é muito caro...

Estima-se que mais de 40 milhões de pessoas na América Latina satisfazem sua necessidade de água de forma autogestionada. Muitos destes Conselhos Comunitários de Água, em outros lugares chamadas Comitês de Água, têm personalidade jurídica própria, estão reconhecidos por autoridades, recebem ajuda pública... Mas outros estão sozinhos, desorganizados, com problemas de liderança... Para tornar efetivo o Direito Humano à água estes Conselhos e Comitês são atores fundamentais. São uma escola de democracia: a população afetada, toda, tem que dialogar, debater opções, pactuar, resolver conflitos internos, planejar, decidir... Assim, um benefício colateral desta luta ancestral pela água, por este serviço básico, é a densidade organizativa que criar as lideranças comunitárias que constroi, sendo as mulheres as que mais se comprometem. Essas capacidades que são construídas socialmente em torno da gestão comunitária da água são as mesmas necessárias para obter um desenvolvimento econômico e social endógeno!

A Bolívia se comprometeu com um conjunto de metas para comemorar o Bicentenário da sua Independência. Uma delas é a de obter, em 2025, o cumprimento efetivo do Direito Humano à água e ao saneamento. E dizemos “efetivo” porque ter direito à água boa não é o mesmo que ter água para beber. Os países da América Latina deveriam seguir o exemplo da Bolívia e aproveitar o marco dos Bicentenários, ou qualquer outro, para autocomprometer-se com a realização deste direito em um momento concreto e próximo do seu futuro. É algo necessário e, se articuladas as forças e vontades, é possível!

Informe-se e apoie a proposta de que a ONU concretize a realização do direito à agua, em: www.contrattoacqua.it

 

Víctor Viñuales

Zaragoza, Espanha