Direitos da natureza?

Direitos da natureza? Quando as palavras são insuficientes
 

Pedro Casaldáliga


O conceito de Direitos Humanos é um dos maiores êxitos da história moderna. Consagrado em documentos fundamentais do Iluminismo no século XVIII, foi ampliando-se e se tornando cada vez mais complexo à luz dos diversos Movimentos Sociais e Políticos dos últimos séculos. Mas seria adequado atribuir à natureza um lugar entre os seres que possuem direitos? Quero reivindicar que isto nos põe em perigo de confundir os planos, de subestimar em diversos níveis a magnitude da posição que ocupa o mundo natural em relação à sociedade humana.

A atual crise ambiental nos oferece a oportunidade de redescobrir nossa relação autêntica com o mundo natural. Não se trata simplesmente de reconhecer os “direitos” da natureza, mas também de reformular nossas instituições mais básicas e de readequar nossa própria linguagem para assegurar o funcionamento integral dos sistemas vivos do planeta.

Vejamos. Os palentólogos garantem que os primeiros animais apareceram nos mares arcaicos há 570 milhões de anos. Desde então formas de vida cada vez mais complexas foram evoluindo. No entanto, o processo evolutivo não foi linear: durante esse longuíssimo período, chamado de Fanerozóico, houve cinco extinções massivas, cada uma delas eliminando uma alta porcentagem das espécies existentes na Terra. A última ocorreu há 67 milhões de anos: exterminou os dinossauros, assim como todos os animais terrestres e marinhos de mais de 25 quilos. O resultado desta catástrofe planetária foi o fim de uma Era Geológica, a Mesozóica, dando início à Era Cenozóica ou dos mamíferos.

Com a ausência dos dinossauros, os mamíferos se multiplicaram e diversificaram em grande quantidade. Evoluíram variedades cada vez maiores de árvores, com suas flores aromáticas e frutos apetitosos, milhares de espécies de abelhas e borboletas e inúmeras variedades de aves com suas cores e cantos. Mais de 60 milhões de anos depois do seu início, a Era Cenozóica viu emergir os primeiros hominídios. Portanto, a beleza e a plenitude da Era Cenozóica – a qual poderia ser chamada a época lírica da vida terrestre – foram a matriz dentro da qual surgiram o coração e o espírito humanos. No entanto, a Era Cenozóica está terminando.

Existe um amplo consenso entre biólogos evolutivos de que estamos em meio a uma nova extinção massiva, a qual está sendo causada por ação humana. Nossas poderosíssimas tecnologias, especialmente aquelas com base em combustíveis fósseis, nos deram um papel determinante no destino da vida terrestre. De agora em diante, somos os humanos que decidimos quais seres vivos sobreviverão e quais estão destinados a desaparecer.

A humanidade jamais enfrentou uma situação nem mesmo remotamente comparável a essa. As mudanças da Era Paleolótica à Neolítica ou da Idade Média à Moderna, são sutis se comparadas com a transição que enfrentamos neste momento. Encontramo-nos em meio a uma convulsão sem precedentes, um abalo de proporções geológicas.

Frente a este desafio enorme, é impossível exagerar a magnitude das mudanças que serão necessárias. A situação jamais poderá ser revertida com medidas “paliativas”, como reciclar papel e vidro ou tomar banho com menos água. Antes, será necessária uma reorientação da prática humana em suas dimensões mais fundamentais. Como dizia o grande teólogo Thomas Berry, requer-se nada menos que “reinventemos nossa espécie”.

Não seria nossa primeira reinvenção. Há 12 mil anos, começamos a abandonar o modo de existência caçador-coletor do paleolítico, o mais longo de todo a trajetória humana, para nos assentarmos em aldeias horticultoras do neolítico. E, há cinco ou seis milênios, fomos adotando os padrões das grandes civilizações clássicas, com suas radicais transformações sociais, políticas, culturais e tecnológicas. Poderia inclusive se argumentar que no Ocidente, há meio milênio, reinventamo-nos mais uma vez com a transição da Idade Média para a Modernidade.

É essencial para uma nova reinvenção humana uma mudança profunda de perspectiva: o reconhecimento (ou melhor, redescoberta) de que a Terra, a biosfera viva, é primária. E que o humano, apesar de toda sua nobreza e transcendência, é derivado.

Mas, este reconhecimento e a consequente reorientação de nossas prioridades e ações, ultrapassam nossas institucionalidades atuais, sejam elas econômicas, jurídicas, sociais, educaionais ou religiosas.

Talvez, o caso mais óbvio seja o de nossas economias industriais, que com seu afã de crescimento ilimitado estão contaminando o ar, os rios e os mares, e envenenando e esgotando os solos. E, como todos sabemos, estão provocando um efeito estufa reconhecido pela esmagadora maioria dos pesquisadores como a ameaça mais imediata e grave para o planeta e seus habitantes. As grandes empresas transnacionais, controladas por uma minúscula elite tecno-empresarial, tratam o mundo natural como uma simples fonte de recursos para a promoção de um “progresso” humano, cujos diversos aspectos estão se revelando como ilusórios e destrutivos.

Nossos sistemas jurídicos também necessitam de uma reorientação radical. Consagram estruturas – frequentemente democráticas e orientadas pelo conceito de Direitos Humanos – que acabam por ser uma legitimação da dominação e exploração da Terra pela espécie humana. De forma análoga às democracias liberais que se tornaram, na prática, exploradoras dos países do sul do mundo, nossas democracias políticas vêm se dedicando a colocar interesses humanos, muitas vezes egoístas ou triviais, acima da integridade da Terra.

Um dos diversos exemplos disso é nossa forma de dividir o planeta em territórios políticos. Estas divisões não respeitam minimamente a configuração de biorregiões, tais como bosques, pântanos, bacias fluviais, tundras, estepes e desertos, que a Terra constituiu para gerir-se e fazer prosperar as formas de vida que correspondem a elas.

Nossos sistemas educacionais, antes de ensinar as novas gerações a reverenciar os sistemas vivos e participar do seu cuidado e cultivo, as preparam para fazer parte das mesmas corporações que estão arruinando esses sistemas. Nossos meios de comunicação se encarregam de hipnotizar até mesmo os povos herdeiros de tradições espirituais milenares – como a China e a Índia – com um “sonho americano” de consumo ilimitado, que está provocando o colapso de ecossistemas em todo o planeta.

Teremos que reorientar todas nossas profissões e ocupações – tais como as leis e a medicina – que deveriam adotar como comprometimento central a promoção do funcionamento integral da Terra.

Nossas próprias línguas exibem vieses antropocêntricos. Teremos, de certa forma, que reinventar a linguagem humana: precisamos de uma linguagem multivalente, centrada na Terra e na vida, capaz de nos sensibilizar frente às múltiplas linguagens não-humanas. As tradições culturais dos Povos da Terra podem nos ajudar nesta tarefa, visto que, desses tempos imemoriais, souberam escutar e deixar-se educar pelas vozes das montanhas, os rios, as aves, os animais e as estrelas do céu.

“Nós sabemos” – disse o célebre Chefe Seattle dos Suwamich – “A terra não pertence à humanidade, e sim os humanos à terra. Não tecemos a rede da vida: somos apenas um fio dela. Tudo que fazemos à rede, nós fazemos a nós mesmos.”

E talvez tenhamos que questionar nossa maneira de conceber a própria mudança: as transformações necessárias surgirão dos eternos vai-e-vens das contendas políticas e sociais? Será suficiente seguir disputando a divisão de uma torta cujos componentes são, em grande parte, produto da super exploração da Terra?

Está claro que, em qualquer mudança, há elementos de luta social, ou de classes, como bem dizia Marx. Mas há outros, talvez de igual importância. Por exemplo, a transição da Idade Média para a moderna se baseou, em grande parte, no surgimento de novas ideias e fascínios, em imagens repletas de paixão.

David Korten, autor do livro Quando as multinacionais governam o mundo, não subestima o papel das lutas sociais e políticas. No entanto, apela para uma profunda mudança cultural e de valores: “A tarefa que nos cabe agora é tão simples quanto profunda: temos que transformar as sociedades dedicadas ao amor pelo dinheiro em sociedades dedicadas ao amor à vida”. Tarefa esta para a imaginação e o encantamento, que são capazes de ativar as aspirações mais profundas da motivação humana.

 

Pedro Casaldáliga

São Félix do Araguaia, MT, Brasil