Direitos da Terra, deveres humanos
Direitos da Terra, deveres Humanos
Afonso Murad
A consciência sobre os “Direitos da Terra” ainda está em marcha. Intuitivamente, já está presente em vários povos indígenas no nosso continente. Para eles, o solo em que pisamos é lugar sagrado. A Terra Mãe cuida e alimenta todos os seus filhos e filhas: plantas, animais e humanos. Oferece-nos como presentes as montanhas e os vales, o ar, água e o solo. Para as culturas afro-americanas, o solo sagrado deve ser reverenciado e dele se recebe o influxo benéfico (Axé). A terra é festejada e celebrada de forma alegre, em dança ritual. Espaço comunitário e materno, é também o lugar de encontro com as divindades. Nestes povos, não há uma noção jurídica de Direitos da Terra. Como o ser humano é filho(a) e parte da Terra, deve respeitá-la. Tal visão, considerada durante muito tempo como algo pré-científico, mítico e primitivo, hoje está sendo resgatada, pois traz uma sabedoria milenar. Na tradição cristã, destaca-se Francisco de Assis, que considerava todos os seres como nossos irmãos.
No Ocidente, o grande marco da consciência ecológica veio com o “Clube de Roma”, em 1968. Em pleno momento da euforia do “progresso” e do “desenvolvimento” na Europa e nos Estados Unidos, este grupo de cientistas e formadores de opinião apontou que a Terra estava alcançando seus limites de recarga. Era preciso mudar de rumo! O movimento ecológico surge como indignação diante da poluição do meio ambiente e (re)encantamento no contato com a natureza. Amplia-se com a “ecologia profunda” e a crítica de Lester Brown, Fritof Capra e outros pensadores. Estes mostram que a raiz da crise ecológica se encontra simultaneamente num modelo de compreensão (paradigma) e no mercado capitalista.
Desde o século XVI, o Ocidente desenvolveu uma postura antropocêntrica exclusivista. Os humanos se consideram o centro do Universo. Os seres abióticos (ar, solo, água, energia do sol), como “recursos naturais”, poderiam ser explorados sem limites. O mesmo se diz dos seres vivos, ou bióticos (microorganismos, plantas e animais). O meio ambiente natural deveria ser dominado, esquadrinhado, manipulado, pois é composto de “coisas”. A economia capitalista, por sua vez, concebe a cadeia produtiva como algo linear: extração, transporte, produção industrial, distribuição, venda, consumo, descarte. Ela ignora que em cada etapa se geram resíduos (lixo) e se consome energia. Na natureza, ao contrário, tudo acontece em ciclos de matéria e energia em constante interação. O que seria o resíduo para alguns seres, se torna alimento ou fonte de energia para outros. Mas a economia de mercado, devora cada vez mais energia e matéria sutil e produz mais resíduos no solo, na água e no ar. Compromete assim os ciclos de vida no planeta.
É necessária a mudança de paradigma. Para uns, o antropocentrismo deve ser abandonado em favor do biocentrismo, pois todos os seres teriam igual valor na teia da vida. Para outros, dever-se-ia ampliar a visão atual, mantendo o ser humano no centro, mas agora em relação com o ecossistema. E há quem sustente que equívoco consiste em insistir em um centro, enquanto seria melhor pensar nas relações que tecem as infinitas redes de matéria, energia e informação. Em vez de buscar um centro, trata-se de reforçar a interdependência, as relações múltiplas que unem todos os seres (inclusive os humanos), na teia da vida.
A luta pelos Direitos da Terra
A Terra como um todo teria direitos? E os distintos seres que a povoam, também? Em caso positivo, quem lutaria por eles? Estas e outras questões suscitam discussões apaixonadas. Parece que o meio ambiente não seria sujeito de direitos, pois não tem consciência, nem liberdade, nem linguagem criativa, como os humanos. Além disso, na teia da vida, os humanos seriam mais importantes que os outros animais. E sempre se levanta a suspeita de que a luta pelos direitos da Terra poderia desviar o foco da questão urgente e imprescindível dos Direitos dos Pobres e dos Povos oprimidos. Por outra parte, a humanidade é parte da Terra, enquanto é ela mesma que sente e pensa de maneira reflexa. Mais ainda: os demais seres tem certa alteridade. Não são simplesmente “coisas”, mas “outros”. Merecem respeito. O grito da Terra não se manifesta como o humano, mas também é um clamor. A Terra é nossa casa comum. Defendê-la é fundamental para garantir a continuidade da vida para nós e para os outros seres. Por exemplo: a luta pelo Direito Humano de saciar a fome depende, entre outras coisas, de solo fértil, condições climáticas favoráveis, sementes acessíveis aos agricultores, água, controle de pragas. Comporta, no mínimo, os direitos do solo, da água e da biodiversidade.
A Terra, como uma unidade diversa e complexa, tem direitos. Estes devem ser garantidos por nós, os humanos. O direito fundamental consiste em assegurar a continuidade da vida em toda a sua extensão, mantendo o equilíbrio do meio ambiente e a biodiversidade. Também há lutas específicas para a defesa de alguns elementos do ecossistema. Por exemplo, a batalha pelos “direitos dos animais”. Assim, estabelecem-se leis que punem os maus tratos aos animais domésticos, criam-se procedimentos em relação aos animais confinados para consumo ou produção, limita-se a caça de animais silvestres, respeita-se o ciclo de desova dos peixes. Adotam-se medidas para evitar a extinção de espécies ameaçadas. Um grupo crescente de pessoas opta pela dieta vegetariana ou diminui o consumo de carne.
Em muitos lugares do planeta cresce a mobilização pela defesa dos biomas que estão sob a ameaça de destruição, sobretudo devido à exploração petroleira, à mineração, à monocultura da soja e do eucalipto, ao sistema intensivo de plantio do agronegócio (com adubos químicos e venenos), além da especulação imobiliária e do avanço caótico dos espaços urbanos. No nosso continente, ganha destaque a luta dos povos da pan-Amazônia, a preservação de zonas costeiras, das savanas (como o cerrado brasileiro), do planalto andino, da patagônia... Também há redes que se articulam em defesa da qualidade das águas, mobilizando-se para preservar as nascentes, estabelecer políticas públicas para garantir a potabilidade das águas de rios e lagos, o tratamento dos efluentes, a redução de emissão de poluentes. A lista é extensa e nela se deve incluir os que lutam para a melhoria da qualidade do ar que respiramos e pela adoção de geração de energia renovável, com menos impacto no ambiente.
A luta pelos “direitos da Terra” compreende tanto as questões planetárias como as mobilizações concretas visando o cuidado com o solo, o ar, a água, as plantas e os animais. Envolve temas complexos, como a política energética e a governança global. Uma coisa é certa: na natureza, tudo está interligado. Impossível compreender um elemento sem levar em em conta os outros. Qualquer movimento em benefício de um, traz benefícios para todos. Inclusive para nós, os humanos. A luta pelos Direitos Humanos, e sobretudo pelos Direitos dos Pobres, se amplia com o compromisso sócio-ambiental. Assim proclama o preâmbulo da Carta da Terra (1987): no meio da uma magnífica diversidade de culturas e formas de vida, somos uma família humana e uma comunidade terrestre com um destino comum. Devemos somar forças para gerar uma sociedade sustentável global baseada no respeito pela natureza, nos Direitos Humanos universais, na justiça econômica e numa cultura da paz. Para chegar a este propósito, é imperativo que nós, os povos da Terra, declaremos nossa responsabilidade uns para com os outros, com a grande comunidade da vida, e com as futuras gerações.
Religiões, Direitos da Terra e Direitos Humanos
Durante a Cúpula dos Povos na Rio+20, em junho de 2012, diversos líderes religiosos, por iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do Movimento “Religiões pela Paz”, reuniram-se para debater a relação entre as religiões e as questões ambientais. Na Carta das religiões sobre o cuidado da Terra, eles afirmam:
A agenda das religiões deve incluir os elementos que afirmam compromissos efetivos com a defesa da vida no planeta. Religiões, sociedade e meio ambiente são realidades estreitamente correlatas. As tradições religiosas contribuem para a ampliação da consciência dos seus seguidores sobre os valores fundamentais da vida, pessoal, social e ambiental, orientando para a convivência respeitosa entre os povos, culturas e credos, e destes com toda a criação.
As religiões presentes assumiram vários compromissos, dos quais destacamos: Desenvolver uma nova ética na relação com o meio ambiente, capaz de orientar novas atitudes defensoras de todas as formas de vida, sustentadas em políticas públicas de justiça ambiental e numa mística/espiritualidade que explicite a gratuidade e o dom da vida na criação.
Afonso Murad
Belo Horizonte, MG, Brasil