Direitos humanos dos indígenas no retrovisor histór

Direitos humanos dos indígenas no retrovisor histórico

Paulo Suess


A defesa dos Direitos Humanos Indígenas começou de modo muito elementar com discussões sobre o reconhecimento de sua humanidade. Duas estratégias se delineavam desde o começo da conquista: Reconhecer a humanidade dos índios, como pressuposto de sua missão, e tutelar essa humanidade através de sua escravidão ou servidão.

O que aconteceu nas “Índias Ocidentais” desde o primeiro contato dos seus habitantes com o conquistador? Colombo resume o clima agradável deste encontro em seu diário, no dia 11 de outubro de 1492: “Demonstraram grande amizade, pois percebi que eram pessoas que melhor se entregariam e converteriam à nossa fé pelo amor e não pela força”. No dia seguinte, 12 de outubro, Colombo já qualifica os índios de “bons serviçais”. Ao longo do diário de sua primeira viagem, fala 77 vezes de ouro e propõe enviar escravos à metrópole em troca de bens de primeira necessidade. A partir de 1497, os conquistadores cobraram dos índios, além dos tributos de ouro e algodão, trabalhos forçados através da “repartição” ou “encomenda” que, segundo Bartolomeu de Las Casas, era uma “tirânica peste”.

A época da primeira metade do século XVI nos permite distinguir três modalidades de luta pelos direitos humanos dos povos indígenas cujos protagonistas foram três dominicanos: Antônio Montesino, Francisco de Vitória e Las Casas, ou seja, a modalidade profética, jurídica e pastoral. A atitude profética de Montesino denunciou as barbaridades cometidas contra os índios. O caminho jurídico apontado por Vitória procurou definir os fundamentos da legalidade da nova administração nas Américas. Finalmente, a proposta pastoral de Las Casas era uma síntese entre o profético e o jurídico.

1. O sermão de Antônio Montesino (1511)

Os dominicanos chegaram em 1510 à ilha Espanhola, hoje dividida entre o Haiti e a República Dominicana. Pela prática missionária de um só ano perceberam que o maior obstáculo para a conversão e catequese dos índios não era sua idolatria, mas o não reconhecimento da dignidade e dos direitos dos índios. O pecador do “mundo novo” não é o “pagão”, mas o “cristão” colonizador. Os dominicanos não pretendiam provar a injustiça da conquista como tal, mas defenderam os índios contra os “excessos” dessa conquista.

No quarto Domingo de Advento, de 1511, a comunidade dominicana de Santo Domingo destinava seu confrade Antônio Montesino como porta-voz de um discurso profético em defesa da população autóctone da ilha. Do púlpito de sua igrejinha de palha e perante os oficiais do Rei, Montesino bradava: “Eu sou a voz de Cristo no deserto desta ilha [...]: Todos estais em pecado mortal e nele viveis e morreis por causa da crueldade e tirania que usais com estas gentes inocentes. Dizei, com que direito e com que justiça tendes em tão cruel e horrível servidão estes índios? [...] Eles não são homens? Não têm almas racionais?”

Com poucas palavras, Montesino descreve o escândalo de Espanhola: horrível servidão, detestáveis guerras, extermínio, trabalhos forçados dos índios e pecado mortal dos conquistadores. A acusação do pecado mortal significava a perda da legitimidade da conquista. Ambos os partidos procuraram apoio político na Espanha para onde enviaram seus emissários: Franciscano Alonso de Espinal pelo partido dos colonos e Montesino para defender a causa dos índios.

No dia 16 de março de 1512, desde Burgos, o provincial dos dominicanos, Alfonso de Loaisa, condenou Antônio Montesino e sua comunidade a um “silêncio obsequioso lato senso”, proibindo de se pronunciar sobre a servidão dos índios. Loaisa justifica sua medida: “Estas ilhas as adquiriu sua Alteza jure belli e sua Santidade fez disto doação a nosso rei, pelo qual tem lugar e alguma razão para a servidão”. A voz profética foi silenciada, sob a ameaça de excomunhão.

O protesto profético de Montesino não foi totalmente em vão. Está na origem das discussões jurídicas que tentaram, através de uma legislação indigenista, legitimar a conquista e conter excessos. Mas a conquista já era o excesso; e é até hoje impossível instalar na injustiça, ilhas de direitos humanos consolidados.

2. Leis de Burgos (1512), Releituras de Francisco de Vitória (1539) e Leyes Nuevas (1542)

O protesto profético de Montesino foi discutido por teólogos-juristas que lograram um consenso em torno de sete proposições que, mais tarde, serviriam como princípios para as chamadas “Leis de Burgos”, de 1512. Em síntese, os teólogos-juristas decidiram que os índios são livres, devem ser instruídos na fé, trabalhar obrigatoriamente para os colonos, ser remunerados e ter casas e terras próprias. O preâmbulo das Leis (Ordenanças) de Burgos declara os índios “por natureza inclinados à ociosidade e maus vícios”. Há, nessas Ordenanças de Burgos, uma grande preocupação com uma Igreja a serviço da encomenda, através de catequese, sacramentos, moral e templos. Medidas de proteção procuram preservar a força de trabalho para os colonos e a vida física dos neófitos da Igreja.

Quando Pedro de Córdoba, o superior dos Dominicanos de Espanhola, chegou à Espanha para socorrer ao confrade Montesino, as Leis de Burgos haviam sido recém-promulgadas. Frei Pedro viu nessas leis “a perdição dos índios” apesar de terem sido feitas por tantas autoridades jurídicas e teológicas, inclusive dominicanos. No intento de ser mediadora numa realidade contraditória, a legislação sempre favorece a classe dominante.

O dominicano Francisco de Vitória (1492-1546), desde 1526, professor em Salamanca, cumpriu este papel de mediador jurídico-teológico entre Estado, Igreja e Índios. Em duas de suas Relectiones (De indis/De jure belli, 1539), uma espécie de resumo do curso anteriormente administrado, Vitória trata da questão da “guerra justa” contra os índios, como um moderador distante que nunca esteve nas Américas. Ele descartou uma série de títulos que, até então, foram considerados legítimos. Entre os “títulos legítimos”, pelos quais “os bárbaros poderiam vir ao poder dos espanhóis”, Vitória elenca a propagação da religião cristã. O anúncio pode ser forçado, a conversão deve ser de livre e espontânea vontade. Outras razões para declarar a “guerra justa”, segundo Vitória: a volta dos índios à idolatria, o desejo dos índios de serem governados pelos reis de Espanha, guerras interétnicas, a comunicação natural e o intercâmbio dos bens através do comércio.

Através do Antigo Testamento, Vitória procurou mostrar que a guerra foi lícita na lei natural, e conclui que o Evangelho não proíbe o que a lei natural permite. Vitória criou uma base jurídica para as “Leyes Nuevas”, de 1542, que eliminaram algumas arbitrariedades contra os índios, mas que ainda estavam longe de proteger os direitos dos povos indígenas. Os Direitos Humanos dos índios nascem com a parcialidade do conquistador europeu.

3. Junta de Valladolid (1550/51): Sepúlveda/Las Casas

Em fins de 1539, Las Casas volta para a Espanha para defender os índios, na corte, perante Carlos V, onde se tomaram as decisões políticas. Na corte se encontrava também o historiador imperial, Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573). Com Sepúlveda e Las Casas se encontravam o defensor do imperialismo nacionalista e o defensor dos valores evangélicos assumidos pela cristandade.

Sepúlveda reuniu seu pensamento em Democrates alter, livro ao qual o Conselho das Índias negou a licença. Sepúlveda conseguiu publicar um resumo em sua “Apologia em favor do livro sobre as justas causas da guerra” (Roma 1550). Segundo ele, com a conquista e submissão, os índios recebem os benefícios da civilização: o ferro, boa agricultura e desenvolvimento de sua racionalidade. Las Casas, com seus dois anos de bispo em Chiapas (1544-1546), com seu conhecimento da realidade, teve condições de desmentir as afirmações ideológicas de Sepúlveda.

Em vista da repercussão das teses de Sepúlveda, dos interesses do império e da ética cristã em jogo, o Imperador convocou a “Junta de Valladolid”, composta por juristas e teólogos, para o dia 15 de agosto de 1550. Os contraentes prepararam suas argumentações que, durante vários dias, leram alternadamente. Frei Domingo de Soto, um dos teólogos que deveria julgar a causa em jogo e presidente da mesa dos debates, resumiu a disputa para o Imperador em seu “Aqui se contiene una disputa o controvérsia entre el obispo don fray Bartolomé de las Casas, obispo que fue de la ciudad real de Chiapas, y el doctor Ginés Sepúlveda, cronista del Emperador, defendendo el Doctor que las conquistas de Indias son lícitas, y el Obispo que eran tirânicas, injustas e inicuas (Sevilla, 1552)”.

A questão indígena do século XVI continua sendo um sismógrafo que registra abalos políticos, econômicos e ideológicos. Na época, Las Casas ainda não é o defensor de um universalismo além da cristandade. Admitiu ainda a escravidão dos Africanos nas Américas, aceitou a “guerra justa” contra turcos e maometanos. Na defesa dos índios, porém, foi irredutível.

 

Paulo Suess

São Paulo, SP, Brasil