Direitos humanos e democracia mundial
Direitos humanos e democracia mundial
Jean ZIEGLER
I. Para um banqueiro de Wall Street ou de Zurich, um saco de arroz é uma mercadoria como qualquer outra. Seu preço de custo (de transporte, de seguro, de armazenamento, etc.) só pode ser determinado pelo livre jogo do mercado, mais precisamente pela especulação na Bolsa de Matérias Primas Agrícolas de Chicago (Chicago Commodity Stock Exchange) onde se fixam diariamente os preços de quase todos os alimentos que existem sobre a Terra. Para o faminto, o acesso a uma alimentação cotidiana adequada que lhe garanta uma vida física e psiquicamente satisfatória, digna e livre de angústias, é uma questão de vida ou de morte.
Diariamente, morrem 100 mil pessoas de fome ou por suas conseqüências imediatas. A cifra chegou a 36 milhões em 2002. A cada sete segundos, morre de fome uma criança de menos de 10 anos. A cada quatro minutos, uma pessoa perde a visão como conseqüência da falta de vitamina A. Há 840 milhões de pessoas gravemente subnutridas, mutiladas pela fome com seqüelas permanentes. Isto acontece num Planeta que esbanja riqueza. A FAO é dirigida por um homem valente e sumamente competente, Jacques Diouf, que afirma que no nível do desenvolvimento atual de suas forças de produção agrícola, o Planeta poderia prover sem problema à alimentação de 12 milhões de seres humanos, ou seja, o dobro da população atual do mundo.
Conclusão: este massacre diário ocasionado pela fome não obedece de modo algum a uma fatalidade. Por trás de cada vítima, há um assassino. A atual ordem mundial não é só mortífera, também é absurda. O massacre se produz no meio de uma normalidade glacial.
A equação é simples: quem tem dinheiro come e vive. Quem não tem sofre, converte-se em um inválido ou morre. Não se trata de fatalidade. Todo aquele que morre de fome é assassinado.
Mais de 2,7 bilhões de seres humanos vivem no que o PNUD denomina “miséria absoluta”, sem emprego fixo, sem trabalho, sem alimento suficiente, sem moradia adequada, sem água potável, sem escola.
A globalização dos intercâmbios e mercadorias, de serviços, de capital, de patentes tem levado durante os dez últimos anos ao estabelecimento de uma ditadura mundial do capital financeiro. As reduzidas oligarquias multinacionais, que detêm o capital financeiro, dominam o Planeta.
A ONU tem catalogado algo mais de 60 mil empresas privadas multinacionais. As 200 mais poderosas têm controlado em 2002 mais de 23% do produto mundial bruto (ou seja, de toda a riqueza produzida no Planeta ao longo de um ano).
Franz Kafka escreveu esta frase enigmática: “Longe, longe de ti se desenvolve a história do mundo. A história mundial de tua alma”.
Sobre bilhões de seres humanos, os senhores do capital financeiro mundializado exercem um direito de vida e de morte. Mediante suas estratégias de inversão, suas especulações, as alianças que estabelecem e as campanhas de conquista de mercados que organizam, decidem dia-a-dia quem tem o direito de viver neste Planeta e quem está condenado a morrer.
Nesta descrição falta uma dimensão do sofrimento humano: a da angústia que tortura qualquer ser faminto desde o momento que acorda.
Como poderá assegurar a subsistência dos seus e alimentar-se no decorrer do dia que se inicia?
Viver com esta angústia nas entranhas, dia após dia, noite após noite, é talvez mais terrível que suportar as múltiplas enfermidades e dores físicas que afetam seu organismo subnutrido.
II. Jean-Jacques Rousseau escreveu: “Entre o fraco e o forte estão a liberdade que oprime e a lei que liberta”. Para reduzir as conseqüências desastrosas das políticas de liberalização e privatização, levadas ao extremo que praticam os senhores do mundo e seus mercenários (FMI, OMC), a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu criar e possibilitar a representação diante dos tribunais de um novo direito do ser humano: o direito à alimentação. A definição deste novo direito implica o seguinte: o direito à alimentação é o direito a ter acesso regular, permanente e livre, seja de forma direta ou mediante aquisições monetárias, a uma alimentação quantitativa e qualitativamente adequada e suficiente, de acordo com as tradições culturais do povo ao qual pertence o consumidor e que garanta uma vida física e psíquica, individual e coletiva, livre de angústias, satisfatória e digna.
Todos os direitos do ser humano são universais, interdependentes e equivalentes. Evidentemente não se trata de opor os direitos políticos e civis do ser humano aos direitos econômicos, sociais e culturais. A vontade de impor mediante a justiça um direito humano à alimentação surge de uma evidência que Bertolt Brecht resume nos seguintes termos: «Uma cédula de voto não alimenta um faminto».
Desgraçadamente, os direitos do ser humano não surgem do direito positivo. Isto significa que não existe ainda nenhum tribunal internacional que faça justiça ao faminto, que defenda seu direito de produzir por si mesmo seus alimentos ou de obtê-los por meio de aquisições monetárias e que proteja seu direito à vida.
III. Boutros Boutros-Ghali, secretário-geral das Nações Unidas até 1997, escreveu: «Como instrumentos de referência, os direitos do ser humano constituem a linguagem comum da humanidade graças ao qual todos os povos podem, ao mesmo tempo, compreender aos demais e escrever sua própria história. Os direitos do ser humano são, por definição, a norma última de toda política (...). São por sua própria essência, direitos em movimento. Com isto quero dizer que têm por sua vez como propósito expressar mandatos imutáveis e enunciar um momento da consciência histórica. Assim, pois, em seu conjunto, são absolutos e fixos».
Parafraseando Hegel, eu acrescentaria que os direitos do ser humano - tanto os direitos civis e políticos, como os direitos econômicos, sociais e culturais - constituem o Absoluto em relação, o Universal concreto. Neste preciso momento são o horizonte de nossa história. Mas um direito do ser humano cuja validade não é sancionada concretamente por nenhuma força, permanece reduzido a uma existência fantasmagórica.
IV. Tudo vai bem enquanto governos como o do presidente Luís Inácio Lula da Silva no Brasil mobilizam por vontade própria todos os recursos do Estado para garantir a cada cidadão seu direito à alimentação. O Sul da África é outro exemplo neste sentido e lá o direito à alimentação está incluído na Constituição. Esta estabelece a criação de uma Comissão Nacional dos Direitos do Ser Humano composta paritariamente por membros nomeados pelas organizações da sociedade civil (igrejas, sindicatos e movimentos sociais diversos) e membros designados pelo Parlamento.
A Comissão tem competências muito amplas. Pode apelar ao Supremo Tribunal contra qualquer lei votada pelo Parlamento, qualquer decisão tomada pelo governo e qualquer medida aplicada por uma empresa privada que constitua uma violação do direito à alimentação. A vítima da recusa deste direito (individual ou coletiva) se dirige à Comissão e esta leva a cabo uma investigação preliminar que, se o caso o justifica, apresenta uma ação de anulação diante do Supremo Tribunal.
Desde sua entrada em vigor faz cinco anos, a Comissão já tem conseguido triunfos importantes. Pôde intervir em todos os âmbitos relativos à recusa do direito à alimentação: expropriação de um camponês de suas terras; autorização dada por um município a uma empresa privada para a gestão do abastecimento de água potável que implique tarifas proibitivas para os habitantes mais pobres; desvio por parte de uma empresa privada da água para irrigação em detrimento dos agricultores; falta de controle da qualidade dos alimentos vendidos em bairros de favelas, etc.
Porém, quantos governos têm, especialmente no Terceiro Mundo, como preocupação cotidiana prioritária o respeito pelo direito à alimentação de seus cidadãos? O resultado é que nos 122 países que formam o que chamamos de Terceiro Mundo vivem atualmente 4,8 bilhões de seres humanos que habitam atualmente a Terra.
Em muitas regiões do mundo, as inumeráveis vítimas das violações do direito humano à alimentação, todavia, não têm na atualidade nenhum recurso digno desse nome. Sofrem e morrem em meio ao silêncio e no anonimato. O trabalho de um relator especial se parece, pois ao de Sísifo, filho de Eolo e fundador mítico de Corinto. O mínimo avanço em qualquer lugar do mundo fica imediatamente compensado pela brutalidade e o desprezo de outros governos em outro lugar do Planeta.
V. Os novos senhores do mundo têm horror aos direitos do ser humano. Temem tanto quanto o diabo da cruz. Pois é evidente que uma política econômica, social e financeira que tomasse ao pé da letra todos os direitos do ser humano acabaria honesta e plenamente com a ordem absurda e assassina do mundo atual e produziria necessariamente uma distribuição mais eqüitativa dos bens, satisfaria as necessidades vitais da gente, a protegeria contra a fome e a livraria de boa parte de suas angústias.
Em suma, os direitos do ser humano são, pois, a encarnação de um mundo totalmente diferente, solidário, despojado de desprezo e mais favorável à felicidade.
Os direitos do ser humano - sejam eles políticos e civis, econômicos, sociais ou culturais, tanto individuais como coletivos - são universais, interdependentes e indivisíveis.
São hoje em dia o horizonte da nossa luta.
Jean ZIEGLER
Relator da Comíaso de DDHH da ONU, Suíça