Direitos Humanos: (r)evolução pendente

Direitos humanos:

(r)evolução pendente

Pedro Casaldáliga


À maneira de introdução fraterna

Talvez desde que o homo – e a mulier! – fizeram-se sapiens, começou a intuir esta Utopia. Mas foi impossível durante dezenas de milênios. Por muito tempo não houve outro direito que a lei da selva (ou da savana africana, da qual viemos), o direito da força, da sociedade piramidal e patriarcal, em que os pobres, os escravos deviam se resignar à realidade cruel de terem nascido “inferiories”, sem direitos nem cidadania. Por muito tempo nós, enquanto humanidade nos arrastamos sobre nossa própria falta de consciência de dignidade. Mas uma dinâmica misteriosa trabalhava nas profundezas, a mesma que nos tirou das savanas e dos bandos de caçadores-coletores e deixou pressentir sua Utopia aos espíritos proféticos e às mentes visionárias, que contagiaram os corações dos pobres, dos militantes utópicos, do povo lutador...

Evoluções históricas sucessivas foram configurando, gradualmente, uma nova consciência de humanidade. Foram necessários milênios de anos para “erradicar” a escravidão – com a qual consentiram muitas religiões, contrariando sua Utopia mais profunda. No entanto, há menos de três séculos, várias revoluções conseguiram os direitos de “cidadania”: já não são somos súditos e sim, seres humanos com dignidade plena, com “direito a ter direitos” (na fórmula que Hannah Arendt cunhou após muito sofrimento). Ainda que ele fosse muito limitado, tal cidadania era apenas para os homens, proprietários, brancos... Sentida no coração da Humanidade, foi a Utopia de uma sociedade apaixonadamente humana, que foi emergindo, levantando-nos, coduzindo a evolução de nossa própria humanização.

Novas “gerações de Direitos Humanos” foram aparecendo, ao ritmo histórico do crescimento de nossa consciência humana e teremos que pensar que ainda temos que descobrir outras. Não chegamos, estamos no caminho e não deixaremos de caminhar. Mas, hoje, o que nos preocupa é, antes, a estratégia de aplicação dos direitos já reconhecidos. Cheios de esperança com outras concretizações da Utopia – em termos de sistemas econômico-políticos alternativos – mais de uma vez pensamos no passado que os Direitos Humanos seriam algo superado, talvez até mesmo “burguês”, como as revoluções “liberal-burguesas” em que surgiram. As utopias que deveriam exigir nosso compromisso deveriam ser mais avançadas, mais comprometidas... Podemos avançar para o futuro utópico por muitos caminhos. Não há apenas um. A teoria pode traçar um caminho e, talvez, sua concepção seja brilhante. Mas, a prática é muito caprichosa – até mesmo contraditória e caótica – e deixa avançar só por onde ela permite, não pode onde nós militantes nos empenhamos.

Nesta hora histórica não está a nosso alcance nenhum tipo de revolução social ou econômica... Mas está aí, à nossa disposição, a Utopia dos Direitos Humanos, com todas suas várias “gerações”. É uma Utopia que não tem inimigos teóricos, que jorra evidências para todos os lados e que “todos” aceitam. E não é uma Utopia “burguesa”. Burgueses foram os direitos da primeira geração que se proclamou – os “habitantes dos burgos” foram seus principais lutadores -, mas as várias gerações posteriores de direitos significaram novos desenvolvimentos da Utopia da dignidade humana: todos os direitos imagináveis são derivados desta dignidade fundamental. Uma realização plena e conquistada dos Direitos Humanos, de todos eles, equivaleria a uma revolução integral: democrática, socialista, feminista, popular, ecológica. Seria a topia da Utopia: a realização de todas nossas possibilidades e desejos. É por isso que, uma retomada social renovada de consciência quanto a estes direitos e sua implementação na conjuntura jurídico-social correspondente é algo revolucionariamente mais efetivo que muitos esforços de militância sociopolítica em outros campos. Claro, trata-se de incluir todos, todas, todo o humano e o não humano, que também tem seus direitos: os direitos dos animais, das plantas, a natureza, o meio-ambiente, a Mãe Terra. Desantropocentrizar os Direitos Humanos, ecocentrá-los, desenvolvê-los... Alcançar uma revolução dos Direitos Humanos equivaleria ao conjunto das utopias históricas pelas quais viemos lutando.

Esta é a hora dos Direitos Humanos, revolucionariamente falando um caminho válido, talvez o atalho que hoje está ao nosso alcance. Sem esquecer nem desvalorizar outras lutas – todas são necessárias – se quisermos chamar a atenção de que esta dos Direitos Humanos é uma que abre caminho para as demais, ela merece uma atenção especial.

As pessoas que escrevem cada artigo desta edição do Livro- Agenda apresentam aspectos desta via, que são verdadeiras revoluções parciais, praticáveis e ao alcance de nossa militância. “Todos os direitos... para todos”, disseram os zapatistas mexicanos como uma formulação emblemática de sua Utopia total. Enquanto houver pessoas cujos Direitos Humanos sejam desatendidos, sentiremos, a partir deste novo estágio evolutivo da consciência da humanidade, que também estamos sendo desatendidos em nossos direitos, porque “seus direitos” são também nossos, são “nossos seus direitos”. Devemos reivindicar esses “direitos seus/nossos” tanto como um dever como um direito.

É uma evolução em andamento, que devemos acolher e ajudar a completar. E por nossa parte, é também uma (r)evolução, a dos Direitos Humanos. Não os do século XVIII, nem os da Declaração de 1948, e sim os dessa Utopia sem fundo que se transcende a si mesma e é redescoberta, reinventada e (r)evolucionada por cada geração.

É nossa hora e este Livro-Agenda nos lembra disso: hora de mudar o mundo, hora revolucionária de exigir e cumprir todos os Direitos Humanos para todos!

 

Pedro Casaldáliga

São Félix do Araguaia, MT, Brasil