Ecologia integral: uma visão histórica

Ecologia integral: uma visão histórica

Alfredo Gonçalves


Na segunda metade do século XX e no início deste século cresce de forma exponencial a consciência quanto à preservação do meio ambiente. Cientistas, celebridades, Igrejas, movimentos sociais e organizações não governamentais (ONGs) passam a centralizar sua preocupação sobre a temática da ecologia. Por toda parte, surgem e ganham espaço progressivo os chamados “partidos verdes”, acompanhados de uma série de iniciativas em favor do respeito e cuidado com a natureza, com a “mãe terra” ou com a “casa comum, nossa responsabilidade”, de acordo com o lema da Campanha da Fraternidade brasileira de 2016, uma vez mais ecumênica, e promovida pelo conjunto das Igrejas do Conic.

A verdade é que ao longo dos tempos, em sentido macro-histórico, o ser humano seguiu o caminho que vai do conhecimento mítico-estático ao conhecimentodominador-explorador, passando pelo conhecimento da sabedoria-contemplativa. A passagem do primeiro desses estágios, mítico-estático, ao segundo, sábio contemplativo, foi marcada primeiramente pela descoberta da escrita, depois pela filosofia antiga. Já a passagem do segundo para o terceiro estágio, dominador-explorador, tem como marco fundamental a época dos grandes descobrimentos (ou conquistas), das rápidas transformações e do método experimental que se estende do século XIV ao século XIX, culminando com a Revolução Industrial.

O império do mercado total

O último passo representa uma corrida sem precedentes, uma vertiginosa aceleração, seja em termos de capacidade de produção e produtividade, seja em termos das invenções ou do ritmo dos próprios acontecimentos históricos. A máquina do tempo muda de marcha, decuplicando a velocidade de forma espantosa. Alguns historiadores batizarão o período de “século do movimento” (Peter Gay) ou “era das revoluções” (Hobsbawm). Leva-se ao extremo, ao mesmo tempo, a exploração da força de trabalho humano, o uso dos recursos naturais e a comercialização dos bens culturais. Implanta-se, desse modo, ao lado da economia globalizada, o império do produtivismo comércio-consumismo, o qual, em sua linha extrema de mercado total, conduz à cultura do descarte, de coisas, de pessoas, e das relações com umas e outras.

Tal modo de vida será responsável, em última instância, pelo aquecimento global, pela poluição do ar e das águas, pelo desmatamento e desertificação do solo, pela contaminação do solo e do meio ambiente, pela sociedade rumurosa, apelativa e freneticamente veloz. Já em 1891, na frase de abertura da encíclica Rerum Novarum, o papa Leão XIII denunciava a “sede de novidades” e a “agitação febril” que se faziam sentir no final do século XIX. Tal sede e tal febre caracterizarão todo o século XX. Podemos afirmar que os cinco conceitos que formam o alicerce da sociedade enganosamente sedutora e fascinante – razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia – servirão para propagar a indústria do “viver bem”.

Individualismo exacerbado, luxo ostensivo e objetos de última geração se unem para satisfazer os desejos, impulsos e interesses daqueles que habitam os andares superiores da pirâmide social. Ao mesmo tempo, entre a minoria de privilegiados e a maioria dos que rastejam na base da mesma pirâmide, abre-se um abismo cada vez maior. Crescem, contemporaneamente, o acúmulo de renda e riqueza e a exclusão social. Se é verdade que, de um lado, a ciência e o progresso tecnológico trouxeram inovações benéficas, especialmente na área dos transportes, comunicações, saúde e conforto pessoal, também é certo que, por outro, aprofundaram as injustiças e desequilíbrios socioeconômicos. Semelhante estado de coisas será analisado tanto pela Gaudium et Spes (1965) e a Populorum Progressi o (1967), do papa Paulo VI, quanto pela Laborem Exercens (1980) e a Centesimus Annus (1991) do papa João Paulo II – cobrindo um século de Doutrina Social da Igreja.

Além das desigualdades sociais, outros questionamentos desconstroem os pressupostos básicos do que Hegel denomina “tempos modernos”. De fato, enquanto a ciência, a técnica e o progresso servirão muitas vezes para incrementar a corrida desenfreada ao armamentismo e à indústria bélica em geral, a razão e a democracia acabarão por desembocar em formas de sociedade irracionais e fortemente autoritárias. Isso sem falar do colonialismo, dos genocídios, das duas grandes guerras mundiais, da ameaça atômica, do totalitarismo e o holocausto, do atual fundamentalismo, e de tantos outros “ismos”! O século XX, com suas mais diversas formas de barbárie, desmente e desmitifica o deus ilustrado e positivista da “ordem e progresso”, o otimismo centrado unicamente na razão humana.

Em busca da ecologia integral

Em um contexto saturado pelos produtos supérfluos e efêmeros (Gilles Lepovtsky), nesta forma de “modernidade líquida” (Z. Baumann), nesta “sociedadedo espetáculo” (Guy Debord) ou nesta “era dos extremos” (Hobsbawm)

– gesta-se e amadurece uma nova passagem, tão revolucionária e estrutural como as anteriores. Trata-se de uma verdadeira transição de paradigma. Mais do que uma época de mudanças, fala-se de uma mudança de época, ou mudança epocal. A partir de uma série de dúvidas sobre os fundamentos da pós-modernidade, emerge com ímpeto redobrado o contraste entre o empenho pelo “bem viver”, de um lado, e a frenética corrida pelo “viver bem”, de outro.

O último conceito, centrado no prazer imediato do presente, marcado pela omnipotência do momento atual, procura usufrir aqui e agora de tudo o que a técnica e o progresso podem oferecer de melhor, em detrimento de grande parte da população mundial, bem como das gerações futuras e do cuidado com o mundo como casa de todos. Esquecendo o passado e despreocupando-se do porvir, o hoje reina imperioso e absoluto. O “bem viver”, em lugar disso, busca uma existência mais sóbria, justa e responsável, redescobrindo uma convivência com o ritmo da natureza, uma responsabilidade para com as gerações que nos seguirão, ao lado de uma solidariedade com outras pessoas e povos que habitam a face do planeta.

Entram em cena a centralidade e o protagonismo do planeta Terra, com seu ritmo e seus gritos silenciosos, e como fonte e conditio sino qua non da vida em toda sua plenitude. Com a mãe terra, entra em cena igualmente a noção de ecologia integral. Por meio da mãe terra, questiona-se radicalmente o saber vigente, explorador-dominador, marcadamente masculinizado, que penetra a natureza para usufruir de seus recursos à exaustão. Não se trata, por outro lado, de um retorno saudoso (e impossível) ao passado idealizado, ao saber mítico-estático ou à sabedoria contemplativa, mas de uma nova forma de coexistência, pacífica e responsável, com as coisas, com as diversas espécies de vida da natureza, com o patrimônio cultural da humanidade e com as relações interpessoais.

Ganha força, então, o conceito de biodiversidade. Aqui não é o ser humano a ocupar o centro da terra, da criação e do universo em sua totalidade. Mas a vida em todas as suas formas. Quando se extingue qualquer espécie de fauna e flora, a própria vida humana empobrece. Sob nossa responsabilidade humana estão, de um lado, todos os seres vivos que habitam a face da terra, e de outro, a preocupação com as gerações futuras. Entre uns e outra, e igualmente necessárias, encontram-se as coisas inorgânicas das quais a biodiversidade se serve para nutrir-se, vestir, habitar, esperar, sonhar, lutar, construir, criar – o que se refere tanto às plantas, formigas e abelhas, por exemplo, quanto aos homens e mulheres.

A morte de Deus, anunciada por Niestzche durante a era moderna, cede lugar ao retorno do sagrado. A pós-modernidade está povoada de deuses. Por trás da nova sede do além, esconde-se nova busca de sentido, de significado profundo para a própria existência. Um sentido/significado que superam o uso e usufruto dos bens e pessoas que nos cercam, para chegar a uma harmonia entre tudo e todas as formas de vida. A noção de cuidado nas relações com as coisas e seres vivos, que se traduz no cuidado com a vida em suas ricas e distintas manifestações. Adquire importância fundamental a mão feminina de homens e mulheres voltados a tomar a vida como uma criatura simultaneamente bela e frágil – colocando-a no centro mesmo de todo e qualquer projeto.

Entre a desvastação do meio ambiente e sua preservação, se sobrepõem diversos níveis de responsabilidades. Em uma palavra, o grau de destruição e/oude cuidado com a “casa comum” é distinto de acordo com a influência social, política e cultural: indivíduos, comunidades, povos, empresas e governos têm responsabilidade diferenciada, a qual, em forma decrescente, vai dos grandes conglomerados transnacionais e organismos internacionais, num extremo, a cada ser humano em particular, no extremo oposto. O certo é que ninguém hoje pode isentar-se da gigantesca tarefa de preservar o planeta Terra como “casa de todas as coisas, plantas, animais e pessoas humanas”.

 

Alfredo Gonçalves

São Paulo, SP, Brasil - Roma, Itália