Ecologia integral, uma visão protestante

Ecologia integral, uma visão protestante

Etienne Higuet


Para a encíclica Laudato Si’, a ecologia integral vê a criação inteira como uma grande família, unida em torno do mesmo Pai, onde todos os seres estão em comunhão. O ser humano é responsável pela organização da convivência de todos, pela preservação dos ambientes, por uma produção não destruidora e por uma justa partilha dos recursos naturais e dos produtos da agricultura e da indústria.

Comemoramos em 2017 quinhentos anos da Reforma protestante. Os reformadores, como Lutero e Calvino, queriam voltar à pureza da mensagem do Evangelho, no qual Deus nos fala através de Jesus Cristo. Pela sua palavra contida na Bíblia, Deus oferece a toda humanidade uma salvação gratuita. O mundo das plantas e dos animais não é mais um caminho para Deus e o ser humano pode usar livre-mente o que encontra na terra na sua atividade trans-formadora e econômica, sem preocupar-se com os danos causados à natureza e a outros seres humanos.

Essa tendência pode ter sido mais forte entre os protestantes, especialmente entre aqueles que entenderam mal a ordem de Deus (o mandato) de “multiplicar e encher, dominar e administrar a terra”, presente no primeiro capítulo da Bíblia, o qual conta como Deus criou todas as coisas, para oferecê-las ao homem e à mulher. Não era para usar e abusar, mas para ser representante, mordomo de Deus no cuidado com a terra.

Separando radicalmente a natureza de Deus e confiando plenamente na capacidade humana dada por Deus, o protestante dedicou-se mais cedo à exploração excessiva da natureza e do trabalho humano, para aumentar a sua riqueza. Mas ele se deu conta, também mais rápido, de que nós, humanos, não somos senhores e proprietários da natureza. Contudo, não podia renunciar à capacidade humana de organizar a nossa vida na terra, pois Deus não tinha criado um mundo já pronto e intocável, mas tinha encarregado o ser humano de continuar a criar o mundo junto com ele.

Lemos nos primeiros capítulos do livro do Gênese que Deus instaurou – com Adão e com Noé – a aliança da humanidade com a natureza. Na Carta de Paulo aos Romanos, é dito que Deus incluiu a criação inteira na nova aliança com a humanidade em Jesus Cristo. Cristo se tornou assim Senhor e Salvador do universo inteiro. O ser humano é, ao mesmo tempo, uma parte da natureza e o parceiro do Criador, responsável pela criação junto com Deus. A natureza, atualmente vítima de uma administração humana irresponsável, é amada, visitada, redimida pelo Deus de Jesus Cristo e suspira, como nós, na espera da sua libertação, “gemendo como em dores de parto”. Isso nos convida a lutar pela conservação e integridade da criação.

Segundo a Bíblia, a terra foi amaldiçoada por causa do pecado de Adão, mas foi restabelecida pela aliança. A observação do descanso no dia de sábado, o repouso da terra a cada sete anos e a devolução das terras perdidas por causa de dívidas a cada cinquenta anos, são primeiros passos na direção da paz e comunhão entre todos. É o sábado, e não o ser humano, que é a verdadeira “coroa da criação”. Muitos protestantes passaram a celebrar o sábado junto com os judeus. Pois a existência protestante é “culto vivo celebrado sem interrupção” (A. Schweitzer). O reconhecimento do dom de Deus leva ao compromisso individual e coletivo.

Para o protestante, a ecologia integral é visitação, sabedoria, shalom e discernimento. Ao visitar o seu povo, Deus questiona e critica a nossa fé, o nosso pensamento e a nossa ação, inclusive a nossa sociedade dominada pela ciência, a técnica e a economia capitalista. Ele nos chama para a conversão, para escolher entre a vida e a morte. O sábio adota um estilo de vida moderado e simples, livre da escravidão do consumo e ecologicamente responsável. Solidário com as irmãs e os irmãos, ele compartilha com todos os bens e as tarefas do nosso planeta. O shalom não é apenas ausência de violência, mas paz e justiça nas relações entre todas as criaturas. Enfim, trata-se de viver a própria fé no respeito à vida, glorificando a Deus e reconhecendo que cada ser humano é único, amado por Deus e chamado à liberdade.

Há grupos de jovens que se comprometem com a “alfabetização ecológica” de seus companheiros e companheiras. A sua missão como cristãos é de levar os jovens a conhecer melhor os problemas da terra e da humanidade no livro da natureza, a tomar consciência da necessidade de cuidar dos ambientes naturais e humanos, e a organizar ações que coloquem em prática a nova consciência ecológica, lutando, por exemplo, para que todo mundo possa gozar de ar e água puros, de saneamento básico, de um lugar certo para depositar o lixo. Cuidar da criação é resposta à vocação humana de relacionar-se com todas as criaturas. As ações práticas deverão levar em conta a ecologia integral, com seus aspectos ambientais, sociais, culturais, econômicos e religiosos. Para isso, poderão usar a técnica, mas sem deixa-la decidir sobre o sentido da nossa vida.

Há, no protestantismo, múltiplos testemunhos de um profundo amor pela terra. João Calvino descreve as maravilhas da providência e fala de Deus como de um agricultor universal agindo em segredo, e do mundo como “teatro da glória de Deus”. Para ele, a exploração do solo é submetida a numerosas regras de uso responsável e duradouro, regras inspiradas na Bíblia: “A terra não se venderá em perpetuidade, porque a terra é minha; pois vós sois para mim estrangeiros e peregrinos (Lev. 25, 23)”. Precisamos transmitir às gerações futuras o sol cultivável em estado igual ou até melhor que aquele que encontramos. O fruto da terra deve ser dividido com os outros, sobretudo os pobres (O. Schäfer). Para Calvino, a missão do ser humano é gerir a natureza como “bom pai de família”, o que inclui governo, direito de correção, responsabilidade e solicitude. Ele ressalta também que a criação inocente é punida por causa do pecado. Mas o ser humano não ficou livre de sua responsabilidade pelo mundo dominado pelo mal, pois a palavra de Deus deve governar todas as áreas da vida. A comunidade cristã deve fazer-se comunidade ou, melhor, comunhão, de toda a criação. Para isso, o protestantismo deve reassumir o seu ideal reivindicador de direitos e de resistência ativa, agora sob um viés integral, que abrange todos: vítimas e opressores, mulheres e homens, humanidade e natureza (J. Moltmann).

O protestante, especialmente o evangélico, deve ficar atento a vários perigos que o ameaçam. Em primeiro lugar, há um modo de compreender a Deus, próprio aos protestantes, que pode justificar a exploração e dominação da natureza e do ser humano: ver a Deus como senhor prepotente do mundo e dominador implacável da terra, livre de agir ao seu bel prazer. O ser humano, sendo representante de Deus nessa mesma função, pode então abusar do seu poder em relação ao mundo, como se ele mesmo fosse o próprio Deus.

Um outro perigo é preocupar-se apenas com a salvação de sua alma, ignorando a obra de Deus no mundo, marginalizando e explorando o resto da criação. O ser humano precisa reencontrar na Bíblia a promessa divina de redenção e salvação que anuncia novos céus e nova terra. É uma coisa muitas vezes negligenciada pelas igrejas evangélicas.

Para alguns, a crise ecológica atual é vista apenas como o anúncio do fim do mundo. Então, “os cristãos não devem se preocupar com o meu ambiente ou com o aquecimento global porque Jesus está prestes a arrebatar a Igreja ao céu”. Ao contrário, a crise ecológica deve ser uma ocasião de arrependimento e conversão, um chamado para mudarmos os nossos caminhos. A maioria dos protestantes acredita que a Igreja deve assumir, junto com toda a humanidade, a responsabilidade de cuidar da criação de Deus, mesmo se for apenas no tempo que nos separa do fim do mundo. Esse pode demorar bastante!

Enfim, devemos permanecer vigilantes e denunciar a realidade do mal arraigado no coração humano, em todas as sociedades e nações. Não podemos nos iludir, ao pensar que o progresso da ciência e da técnica, as políticas públicas e a ação dos movimentos ambientalistas possam acabar de vez com o mal presente nas coisas, nas mentes e nas sociedades. A Bíblia é mais realista quando proclama que o mal não desaparecerá da nossa existência terrestre antes da salvação final. Ele sempre ameaçará a humanidade e o planeta terra. É preciso reconhecer que muitas comunidades protestantes de todo tipo estão plenamente conscientes dos perigos mencionados. Lutero dizia: “Mesmo se o fim do mundo fosse para amanhã, plantaria hoje minha macieira”.

 

Etienne Higuet

São Paulo, SP, Brasil