Ecologia: uma dívida das religiões

Ecologia: uma dívida das religiões

Correção ecológica da espiritualidade clássica

Marcelo BARROS


A espiritualidade ecológica é uma dívida das religiões monoteístas com a humanidade e com a Terra, assim como é um desafio urgente, porque a sociedade não resolverá a crise ecológica apenas com soluções técnicas e políticas, por mais importantes que estas sejam. Para salvar o planeta Terra e a comunidade da vida é preciso uma espécie de pacto espiritual de respeito e cuidado ecológicos que envolva todas as tradições espirituais e organizações éticas da humanidade.

Hoje, resgatar a sacralidade da Terra é um desafio teológico e espiritual, mas é antes de tudo uma questão de vida. Vandana Shiva, ecologista e pensadora indiana, escreveu que o maior desafio atual para o planeta Terra é «sobreviver ao modelo de desenvolvimento social, político e científico que a sociedade ocidental consagrou como sendo o único».

Deus no banco dos réus

Vários estudiosos europeus e americanos culparam a cultura hebraico-cristã pela mentalidade que predominou na sociedade ocidental e tem sido responsável pelo desrespeito ao meio ambiente e destruição da natureza. Lynn White Jr escreveu sobre «As raízes históricas da nossa crise ecológica». Afirma que os ambientalistas precisam romper com a herança judaico-cristã, que seria a principal culpada pela destruição da natureza. Ele propõe o resgate das antigas religiões animistas e elementos das religiões orientais. O argumento mais grave é que a religião judaica e cristã levaram a sério demais o antropocentrismo da Bíblia, segundo a qual Deus criou o ser humano como «senhor da criação» com a ordem de subjugar a natureza e domá-la a seu bel-prazer. E a Bíblia ainda diz que o humano é, entre todos os seres, o único criado «à imagem de Deus»; o único a ser considerado «semelhante a Deus» (cf. Gn 1,27 e 9,1-7; Sal 8). Esta concepção bíblica teria dado o suporte para o ser humano para explorar a terra e destruí-la, ao invés de se relacionar com ela amorosamente. Algumas ecologistas femininas compararam os relatos da criação na Bíblia com mitos do antigo Egito e da Babilônia e julgaram que, tal qual nestes mitos orientais, também na Bíblia, as histórias da criação contêm a vitória do deus masculino ordenador que derrota um princípio feminino caótico.

Fundamentos de uma espiritualidade ecológica

Espiritualidade é uma palavra estranha à Bíblia e às culturas antigas. Em certos círculos, espiritualidade é confundida com espiritualismo, movimento que opõe matéria e espírito. Nos últimos 50 anos, muitos se esforçaram para superar o dualismo entre corpo e alma, matéria e espírito. Se se compreende «espiritual» como aquilo que não é material, não podemos falar em «espiritualidade ecológica». Em línguas antigas como o hebraico, «espírito», «ruah» significa ventania, sopro. Indica todo ser que respira. Portanto, todo ser vivo é espírito, ou portador do espírito. Este princípio de vida não é apenas o ponto de partida da vida animal. É a fonte do amor, dos sentimentos e da unidade entre os seres. Ter espírito significa ter capacidade de verdadeira relação e de criar unidade. Segundo a pesquisa científica mais atual, a vida é esta teia de relações. Conforme Fritjof Capra, físico e teórico de sistemas, existe vida e espírito quando os primeiros prótons se relacionaram e se constituíram como um esboço de unidade primordial: «Mesmo nas mais minúsculas células, bactérias chamadas de microplasma, uma complexa rede de processos metabólicos opera ininterruptamente... A vida contínua não é propriedade de um único organismo ou espécie, mas de um sistema ecológico... Não existe nenhum organismo individual que viva em isolamento» (Capra, As Conexões Ocultas).

Já nas primeiras décadas do século XX, Teilhard de Chardin dizia que à medida que este processo da vida vai evoluindo, vai se complexificando em graus de unidade cada vez mais profundos até que o espírito humano alcança o nível cósmico. Isso significa que todos os seres são expressões desta energia de relação cósmica a que podemos chamar de «espírito». Possuem, assim, certa interioridade. São grávidos do Espírito no sentido do amor divino que as religiões reconhecem na base de todo o universo...

O universo nos remete continuamente ao seu mistério mais íntimo: um princípio divino que é Amor criador, permanentemente operante e renovador, energia que é vida e nos dá vida. Nós vemos nesta fonte de luz e de vida nova um ser pessoal a quem chamamos Deus.

Uma espiritualidade ecológica se propõe ir além das religiões (sem rejeitá-las), como atitude de amor que redescubra o encanto da vida presente em nós mesmos, em todo ser humano e no universo. Defender a natureza agredida e desrespeitada já não é, hoje, uma atitude «natural» ou espontânea, como pode ter sido em culturas ancestrais. Mesmo culturas ainda muito rurais ou pouco ligadas à técnica moderna se sentem menos dependentes do ambiente que as envolve e aprenderam que podem transformá-lo. Antigamente, até poderiam fazê-lo, mas deveriam antes pedir permissão aos deuses. Hoje, sentem como se não tivessem mais tanta certeza se os deuses continuam tomando conta dos elementos naturais tão ameaçados e agredidos pela humanidade. A reação comum é a decepção e certo distanciamento de uma atitude reverencial para com a natureza.

A espiritualidade ecológica não é voltar a uma religião do medo ou da dependência das forças cósmicas e sim instaurar uma comunhão reverencial com o mistério mais profundo, presente em cada ser. Isso exige de cada pessoa uma contínua conversão na sua forma de lidar consigo mesma, com os outros e com a natureza. Não é preciso pensar que, primeiramente, deve-se trabalhar o nível individual e íntimo para depois se passar ao social. A relação entre o pessoal e o social é dialética. Uma não se dá profundamente sem a outra.

A espiritualidade deve nos tornar capazes de captar em todas as criaturas, em sua dinâmica evolutiva, em sua diversidade imensa e sua complexidade uma mensagem espiritual de beleza e de irradiação do amor universal. A missão do ser humano é ser capaz de escutar os milhares de ecos que vêm desta grande Voz, celebrar sua grandeza e unir-se à canção de louvor que todas as coisas fazem à Vida e à sua Fonte Maternal, atração unificadora de tudo. Somente o ser humano pode realizar o que testemunhava o poeta inglês e místico, William Blake: «Ver o mundo em um grão de areia, o céu em uma flor silvestre, conter o infinito na palma da mão e a eternidade em uma hora».

Pistas para se viver uma espiritualidade ecológica

1) Um bom médico é aquele que cuida bem dos seus pacientes. Do mesmo modo, viver uma espiritualidade ecológica exige uma operação tríplice: 1. a preo-cupação de conhecer bem aquilo de que se cuida; 2. uma possibilidade real de atuar, mesmo em nível micro e quase insignificante; 3. finalmente, e isso parece o mais importante: um envolvimento afetivo favorável, e mais do que isso, amoroso.

2) Por nenhuma hipótese se pode acreditar em espiritualidade ecológica que não se origine e inclua uma ecologia social. Quem destrói a vida e a natureza é a humanidade e, ao mesmo tempo, o ser humano tem se revelado, de todos os seres vivos, o mais frágil.

Anualmente, 30 milhões de seres humanos morrem de fome, enquanto a produção anual de alimentos excede em 10% as necessidades de todos os habitantes da terra. Para que o preço não baixe e o sacrossanto lucro dos proprietários não diminua, os países ricos preferem queimar tudo o que não podem vender, ou deixam o excedente apodrecer em seus celeiros.

Esta crise de civilização não se resolverá sem um cuidado especial com a vida no mundo. De fato, as pesquisas revelam: o planeta Terra tem mais ou menos 4, 5 bilhões de an jos. Diversas vezes, teve crises e catástrofes muito sérias. Entretanto, sete entre dez biólogos acreditam que a ameaça que hoje pesa sobre a vida no mundo é mais grave e terrível do que o cataclisma ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros foram extintos do planeta. Agora, o problema não será provocado por algum cometa que desaba sobre a terra nem por tragédias climáticas. A destruição do planeta será ocasionada pela atividade do próprio ser humano. Calcula-se que, durante os próximos trinta anos, até um quinto de todas as espécies vivas estarão extintas da terra.

É preciso que o cuidado e uma forma carinhosa de ser se tornem caminho espiritual de cada um de nós, ideário político para escolher nossos representantes na Política e critério para organizar no mundo uma nova Ética. O futuro merece que unamos tudo isso em um caminho de compromisso com a vida nossa e a das futuras gerações.

3) A crise ecológica mundial nasce em -consequência dos nossos «desertos espirituais», dos desertos pessoais e sociais do Ocidente.

Por isso, é urgente retomar a intuição do profeta Dom Hélder Câmara de formar pequenas comunidades, alternativas, espalhadas por toda a parte, agora, especialmente, voltadas para o cuidado com a Vida, a Terra e a Água. Graças a Deus, estas comunidades têm começado a existir, e tentam viver de maneira sóbria novos estilos de vida. Aí é muito forte a dimensão da espiri-tualidade ecológica, sempre ligada ao compromisso concreto de transformar a sociedade e defender a natureza ameaçada. Como dizia Gandhi: «Precisamos viver e ser a mudança que propomos ao mundo».

 

Marcelo BARROS

Goiânia, GO