Economia de Francisco e Clara
UMA PROPOSTA ECOLÓGICA E ANTICAPITALISTA
A mudança radical do sistema de morte, que governa o mundo, pode estar em nós por meio
de nossos sonhos e nossos gestos, em nossas comunidades. É possível que estejamos falando de
uma cura coletiva, diante de uma doença que nos abateu. É certo que se trata de um mergulho sobre
o potencial ecológico anticapitalista do ser humano, não visto em tempos da economia da destruição.
O século XX foi um ensaio da beleza e do horror, construídos no segundo milênio. Nele, a
economia de latifúndio escravagista tomou corpo na industrialização e no desenvolvimentismo, a
sede de progresso tecnológico foi entremeada por guerras, massacres e confl itos de ontem e de hoje.
Foram escritas novas formas de colonialismo e de aprofundamento do capitalismo, ambos, portanto,
como corpo e forma da economia do presente. No mesmo século, também foi possível alcançar a arte
na profundidade da alma humana, com as novas formas de organização e de luta, de conquistas e da
marca da resistência, como perenidade do ser humano em sua busca pela liberdade. Tempo das lutas pela
erradicação da fome, da educação como prática de liberdade, da política como bem comum, tempo das
redes de resistência de comunicação livre.
O ser humano também passa por uma transição. Do agrarismo do fi nal do século XIX para o
industrialismo do século XX, para, enfi m, a era do trabalho imaterial. O capitalismo, neste último
período, fi nanceirizou-se, e isso se acarretou em concentração de renda nunca antes vista na história
da humanidade, somada a uma destruição do trabalho na sociedade de classes. No mundo, o processo
de destruição da seguridade social e de todas as políticas sociais está mais agressivamente presente
no advento do neoliberalismo, doutrina econômica que constrói o sujeito empresarial. O ‘patrão de
si mesmo’ é um modo de vida do imperialismo às avessas, propondo que você seja uma empresa, dê
lucro, tenha produtividade e gere suas fi nanças, em meio ao abandono de qualquer política de proteção
que o Estado possa prover, do século passado.
O desafi o para este tempo do mundo reside numa nova subjetividade, em que a espiritualidade
libertadora e pluralista, somada a contra-condutas diante do império neoliberal, reposicionem uma
nova forma de estar no mundo. O Papa Francisco, se não atento a isso, pelo menos atento aos
protagonistas da história, os empobrecidos, conectou, aos movimentos populares, uma nova ação eclesial
engajada: a Laudato Sí - Sobre o Cuidado da Casa Comum e a Frateli Tutti – Sobre a Fraternidade e a
Amizade Social, são cartas que anunciam esse limiar. A reconstrução da ecologia integral e fraternidade
universal aponta a retomada do ser ecológico do humano e da economia, como mote de solidariedade
e nova cultura de relações, não mais líquidas e descartáveis, mas territoriais e fraternas.
A Economia de Francisco e Clara é uma ferramenta desse instrumento revolucionário: potentes narrativas
e inserções territoriais, a fi m de construir nova rota para a produção e consumo. No Brasil, ao chamado
do Papa Francisco para a Economia de Francisco, foi feita uma inclusão contestatória: Clara. No nome
da jovem que, com ousadia e coragem, rompeu os vínculos familiares e financeiros para seguir o
pobrezinho de Assis, são lembrados todos os grupos colocados à margem da sociedade, que se constrói
para gerar exclusão. O movimento brasileiro abraça as figuras não vistas pelo recorte do Norte e coloca a
mulher como protagonista. Nesse chão, a Economia é também de Clara, porque carrega a garra de Marielle,
a coragem de irmã Dorothy, a bravura de Margarida Alves. Só assim faz sentido.
A face latinoamericana caracteriza o levante anticapitalista, que se forma e fortifica, a partir do
chamado no Brasil. Por ser originado na perspectiva nortista, nem tudo se enquadra à realidade de um
povo que é singular, o que permite construções particulares e direcionadas a uma história de lutas
anticolonialistas e de libertação. O desejo pelo resgate de uma organização nacional integral e
insurgente, traz lembranças de esperança e reacende a chama em muitas pessoas, que já não acreditavam
mais. Por outro lado, o direcionamento inicial às juventudes do convite para ir até Assis, na Itália, fez
somar, à construção, muitas outras pessoas, ainda não inseridas nesse contexto. Dessa mescla efusiva,
borbulham ideias, força e vontade, que desaguam em uma articulação nacional e outras tantas organizações
territoriais, pensando o contexto e trabalhando em alternativas.
Os povos, nos movimentos populares, organizações da sociedade civil, professores/as, juventudes e
ativistas, entendem esse chamado por um ideal de vida, de solidariedade e ecologia integral, como chave
emancipatória: uma oportunidade de construir outros mundos. Na realidade latinoamericana pulsa o resgate
do Bem Viver dos povos originários, a mudança da lógica de extrativismo desenfreado para a sintonia
com a Mãe Terra, ao conceber relações que a respeitam como Irmã, sem que seja indistintamente serva do
homem. Por isso, o chamado a re-almar a Economia passa pela ecologização do pensamento e das ações.
O que significa deixar o modelo antropocêntrico de apropriação da natureza para a concepção de
que o ser humano com ela convive, em uma dança infinita, que possibilita a própria existência. Como
na dança, a sincronia e o respeito devem deslizar suavemente para tornar possível a vida. A luta
pelas práticas agroecológicas, pela aproximação do campo e da cidade, pelo fim do dos latifúndios e suas monoculturas, perpassa o ideal da Economia de Francisco e Clara, que, além de anticapitalista, é
ecológica.
Na perspectiva de transpor a subjetividade neoliberal, que transforma as relações para torná-las consumo, individualismo e indiferença, o chamado é para a construção de um novo tempo. Para unir as práticas já existentes de economia solidária, bancos comunitários, moedas sociais, cooperativas, em um horizonte comum. Na certeza de que todas as lutas são atravessadas pela vontade de construir um futuro de igualdade, justiça social e fraternidade. Para isso, o enraizamento desses valores é fundamental. Torna-se necessário abraçar os territórios, fomentar o ressurgimento da solidariedade comunitária, da organização popular, da efetiva democracia. Não
se quer inventar a roda, nem se ignora o esforço de tantas pessoas com esse mesmo objetivo há muitos anos, mas se aproveita uma oportunidade. A oportunidade de ampliar o chamado, de formar pontes, de renovar esse compromisso e de potencializá-lo. Economia de Francisco e Clara é potência. É resgate, reforço, impulso.
As novas economias que o chamado do Papa começou a instigar vão brotar (e já brotam!) das periferias. Das lutas populares, das necessidades, da criatividade e da irreverência. Para juntar essas potencialidades às tantas pessoas que se somam a partir da Economia de Francisco e Clara, germinam as Casas de Francisco e Clara. Com o conceito simples de ser um lugar de referência na comunidade e de construir coletivamente ao povo possibilidades concretas de respostas aos problemas locais, são lugares-farol de esperança, para reunir juventudes e quem mais
interessar na construção de novos horizontes.
As Casas de Francisco e Clara expressam a vontade religioso atravessar as práticas comunitárias, formando elos inexistentes ou fortalecendo aqueles já fragilizados. Nas Casas, pretende-se a valorização da cultura local, das manifestações espirituais cultivadas nos territórios, das necessidades latentes e da sede pela Terra sem Males. O convite se faz para reorganizar os espaços, chamar o povo para junto, ocupar espaços que respiram morte de um sistema econômico perverso e fazer, novamente, florescer a capacidade de sonhar e construir outros mundos.