Economia do bem comum e ressignificação do conceito de utilidade pública
Dora Lucy Arias Giraldo
Aparentemente, existe um consenso sobre o que é bem comum. Tanto, que os Estados se auto justifi cam pela busca dele e dizem representar os interesses gerais. No entanto, assim como ocorre com outras noções de signifi cado amplo - como o amor, a paz, a justiça etc. -, a aparente unanimidade não existe e, na realidade, está
subjacente ao que María Iglesias Villa, citando Gallie (1957), chama de Conceitos Essencialmente Controversos (CEC). Estes, são entendidos como conceitos avaliativos, referentes a bens complex os que podem ser descritos de diferentes formas. A utilidade desses conceitos repousa na polêmica competitiva que geram, pois, do contrário, por sua amplitude exagerada, permaneceriam como noções vazias.
Na visão dominante da sociedade ocidental, o bem comum foi enquadrado a partir da ótic
antropocentrista, mantendo como base, ao menos, duas premissas: a entrega aos seres humanos, por parte de um ser supremo, do direito de dispor totalmente o planeta e seus recursos; e a suposta infi nitude dos mesmos recursos. Contudo, a crise ambiental, a evidente finitude dos recursos naturais e o agravamento dos conflitos socioambientais estão produzindo uma reavaliação desta noção, dos pressupostos em que se baseia e dos conceitos em que se apoia. Assim, se converte em um Conceito Essencialmente Controverso, ao ser questionado e ressignifi cado, não tanto por necessidade teórica, quanto por um imperativo de justiça social e da relação dos seres humanos com a Terra.
O modelo extrativista vigente tem distorcido o sentido do conceito de bem comum, especialmente quando se apoia em ideias que supostamente o realizam, como “utilidade pública”, “interesse geral” ou “interesse social”, para justifi car os megaprojetos que afetam as comunidades e seus territórios. Essa é a principal conclusão de um
estudo realizado sobre a aplicação dos conceitos de utilidade pública e análogos em projetos minero-energéticos na Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Honduras, México e Peru, por defensores de Direitos Humanos e advogados de comunidades étnicas nestes países. Outro elemento a ser destacado neste mesmo estudo é a demolição da presunção que as legislações estabelecem, em favor da utilidade pública do extrativismo. A realidade mostra que, desta forma, a utilidade privada e a expropriação dos bens comuns são ocultadas, sem também que se produza um debate aberto ou uma consulta democrática sobre o assunto.
Como já assinalamos, os Estados justifi cam suas políticas de intervenção nos territórios com base em uma suposta redistribuição de riquezas, que se sobrepõe e exclui, do espaço público, o debate sobre a exploração da terra e seus elementos. E, inclusive, apelam ao uso da força, para a qual as empresas exibem seus títulos e
concessões como legitimação de suas operações. Entretanto, as comunidades reivindicam a proteção aos territórios, ao meio ambiente, à água, ao seu direito de decidir e o respeito às suas formas de vida, suas cosmovisões particulares, à forma como concebem o desenvolvimento e o progresso e sobre o que são ao seu juízo os bens comuns.
O bem comum contém um componente reforçado dos Direitos Humanos em suas dimensões de integralidade, universalidade e interdependência e das correspondentes obrigações dos Estados de respeitá-los, protegêlos
e garanti-los. Isso envolve a ideia de justiça social e ambiental nas relações humanas e com a natureza. Nos programas extrativistas desenvolvidos nos países antes mencionados, a utilidade pública e outras ideias similares,
apoiando-se no desejo e suposto consenso ao redor do bem comum ou “interesse geral”, consagram figuras jurídicas, cujas interpretações terminam viabilizando megaprojetos. Em contraste com a linguagem dos movimentos sociais e das comunidades, que disputam, com outros termos, o conteúdo e significado de utilidade pública.
O bem comum inclui o bem-estar em todos os níveis, de todos os seres vivos, em uma ética coletiva e particular de respeito à natureza. Assim definido, o extrativismo, como modelo de desenvolvimento, é claramente incompatível com o bem comum. Os frutos da mineração não beneficiam a sociedade em seu conjunto, nem
os trabalhadores do setor minerador e, muito menos, a população local. Apesar dos lucros multibilionários, especialmente das transnacionais e dos grupos sociais vinculados a elas nos níveis decisórios, as condições sociais, ambientais e trabalhistas neste setor permanecem precárias e, em muitas ocasiões, perigosas.
A visão de curto prazo, orientada ao lucro e, com frequência, dependente de interesses estrangeiros, presente nos países em que se desenvolvem os megaprojetos declarados de utilidade pública, não contempla os direitos
e garantias das gerações futuras, que verão seriamente comprometidas suas possibilidades de desfrutarem dos mesmos recursos e usufruírem de um meio ambiente equilibrado. É evidente que isso não corresponde, de forma alguma, com a ideia de bem comum, nem às suas equivalentes, trazidas do mundo indígena andino, como o Sumak Kawsay – o Bem Viver, coincidentes com o texto e, especialmente, o espírito da encíclica papal Laudato Si, que enfatiza a necessidade do cuidado da terra como a casa comum da humanidade.
Os danos ocasionados pelo extrativismo minero-energético, tão denunciados pelas comunidades, se tornam irreparáveis e confrontam, dramaticamente, os tempos e espaços destas e da natureza. Assim, a linearidade e a velocidade das intervenções extrativistas geram rupturas que geralmente são impossíveis de serem sanadas.
Por outro lado, uma ressignificação da “utilidade pública” no sentido do bem comum, definido democraticamente, inverteria esse estado de coisas e priorizaria a proteção da Mãe Terra e seus ecossistemas vitais, assim como a proteção das populações que nela habitam. E dos Direitos Humanos, com todas as suas implicações, para
permitir somente as atividades econômicas que ão prejudiquem o bem comum.
Dados os efeitos graves ao meio ambiente, ao tecido social e aos Direitos Humanos, somente deveriam ser permitidos empreendimentos que realizem um balanço do bem comum e que obtenham resultados
positivos no mesmo, descartando aqueles meramente orientados ao lucro.
O bem comum deveria ser o fim último de uma economia que, nos termos do Bispo dos Pobres, Dom Pedro Casaldáliga, não tenha um objetivo somente econômico, mas, também, fins sociais e ecológicos. Uma economia a serviço do bem viver na construção da plenitude da existência, que satisfaça as necessidades de toda a família
humana, reunida na Oikos - a Casa Comum -, em harmonia com a Mãe Terra e com todos os seres que nela coabitam. Nestes marcos, o sacerdote trouxe de volta o legado dos primeiros cristãos e sua recusa aos processos de acumulação de propriedade privada e de exclusão das maiorias. Com isso, de todas as guerras provocadas na
sociedade pelas contradições entre os que têm tudo e os que não têm nada. É assim que manifestou a urgência de uma outra economia para a vida, para a qual a palavra-chave na linguagem bíblica é a economia do Reino, “a
revolução total das estruturas pessoais e sociais, a utopia necessária, obrigatória” (Casaldáliga, Pedro. http://www.ihu.unisinos.br/sobre-oihu/ 171-noticias/noticias-2013/520944-a-outraeconomia).
Nesta “Oikos-nomía”, não há lugar para a desigualdade escandalosa, sobre a qual está formada a sociedade atual. E, somente nela, podem reconciliar-se os conceitos de bem comum e utilidade pública.