Elegia a Cristina Dawning

Elegia a Cristina Dawning

Ernesto Cardenal



Cristina prima da minha mãe
era de quinze anos na época
     magrelinha de cintura
     pernas magrelas, recordo,
     e eu tinha sete anos
          era a era
          de Dona Carmela Noguera
          escreveu Joaquín Pasos
               (Dona Carmela
               a de saraus de escola
               onde colegiala
               se exibiu Cristina)
e era a era de Greta Garbo
Lindenbergh Babe Ruth Chaplin
          noiva dos poetas vanguardistas
     não seguiu sendo de quinze anos
     nem eu tampouco criança
               nos últimos anos
               entre quatro paredes
               não recordava nada
               nem sequer quem era

Babe Ruth era o dos “jonrones”
era quando eu era criança
               talvez não sabem vocês quem é
faz muito que morreu
a Dichinson dizia
se já não estou viva
ao de gravata vermelha
dá-lhe por mim sopa
          morreu Merton
morrerão as estrelas sem calor
frias como o entorno delas
e Elliot: “todos caem no negro”.
          Os buracos negros também desaparecem.
Na minha oficina de poesia
de crianças com câncer
uma criança escreveu
de crianças desenganadas
esperando seu turno.
          Todos no cosmos
          esperamos turno.

Órfãos no mundo mecanicista
à mercê do acidente e do azar
          o Ford ao que subo
          pode ser o da morte.
Que é a vida
               feita de partículas
               partículas elementares
               que não estão vivas?
“O mundo é como é”
dizemos todos
a mecânica quântica tem comprovado
que não é como é
ou não trabalhariam os computadores.
          Como envelhecemos
          deveríamos desenvelhecer
               não há simetria
          esta assimetria do tempo
               de onde veio?
de onde vimos
nós filhos do tempo
no meio da beleza perecedoura
ansiando beleza perdurável?

Se há Deus somos imortais
          e se não há não somos
          não há de outra
               não há outra alternativa
               que ser eterno
               ou eternamente não ser
a eternidade ou nada não há outra coisa
só o tempinho que estivemos vivos
tão só esses dias já passados
e não haverá nunca jamais nada mais
mais nada por sempre jamais
não ser por toda a eternidade

               Um dia a consciência
               voltou-se para si mesma
               consciência de si e infelizmente
               de sua morte.
          Único animal que sabe que vai morrer
          Teve que haver consciência
          que conhecesse o universo
          E conhecendo o universo
          conheceu que morríamos
A aparição da consciência
foi outra existência biológica
               O não somente conhecer mas conhecer-se
               não somente saber mas saber que sabe
A certeza da morte
como fruto desse avanço
Os animais conhecem
mas não a si mesmos
conhecer-se a si mesmo
foi conhecer que morremos
               a consciência um perigo para a espécie
               Poder sobreviver à certeza da morte
               e apesar dela não termos sido extintos

Caçador-coletor
na selva negra
sem médicos
o menor mal-estar
aterrorizava
               e entre leões
               indefeso e nu
               uma comida ambulante
          cortava as frutinhas
          mirando a todos os lados
          temeroso da morte
               mirando as belas estrelas
               sem entendê-las
               que serão elas?
          Caçadores-coletores
          conscientes de ser conscientes
               conscientes da morte
                    morria o cervo ferido
                    e o matador sabia
                    que ele também morreria

Lá em cima entre os galhos
não havia morte
               o macaco está no presente
                         intensamente
               sem nada de passado
                              nem de futuro
não há morte para as crianças
quem fosse criança sempre!
               quando eu tinha quatro anos
               matei um chocollo com um coco
          e dei gritos pelo que fiz
               (assim soube da morte)

          Na selva negra
          onde tudo pode acontecer
          a morte é a única
          certeza que temos
Desde quando há humanidade tem havido religiões
          superstições se vocês querem?
          ou é que talvez foi fé
Assim não nos extinguimos
sabendo que morríamos

Há Deus ou o universo é absurdo
E se não há morremos para sempre
          Neste sentido seria transcendência
          uma adaptação da evolução na mente
          ou mecanismo de defesa da nossa espécie
          ante o efeito paralisante da consciência
          da morte
                         Assim sobrevivemos
Religiões ou superstições
          sempre foi fé
na imortalidade

Chegará um dia
em que não haverá astronomia
e o céu estará vazio
as galáxias se separam
e vão ficando sozinhas
sem nenhuma outra à vista
e em cada galáxia isolada
as estrelas apagando-se
e quando se apague a última
tudo será trevas
     (isto não é ciência-ficção)
e é assim a coisa Cristina Dowing
neste cosmos não há salvação
                    Salvo
           um prodígio biológico
               – a Encarnação –
          uma evolução biológica
               que acabe em Deus

Somos um só Corpo
o de um ressuscitado
dentre os mortos
               A humanidade é uma
               organicamente uma
               se ressuscita um
               ressuscitam todos
“se não há ressuscitado estamos lascados” (1 Cor 15,17)
A evolução tem direção
que é a união do universo:
o Amor de uma humanidade sem solidão
incompatível com a morte total
tudo determinado e por isso se diz:
“Para que se cumpram as Escrituras”
Não foi profetizado porque sucederia
mas sucede porque foi profetizado
                    Ressuscitam todos
                    os que são um
               num passado futuro presente
Cristina Dowing
               P r e s e n t e!
Ou será talvez como nascer outra vez:
uma vida nova num novo universo
               As Escrituras dizem
               tinha que morrer
               para ressuscitar.

Ernesto Cardenal

Manágua, Nicarágua

Tradução de Paulo Gabriel e Pedro Casaldáliga