Espiritualidade da resistência a partir da compaixão com as vítimas

 

Juan José Tamayo

Vivemos em um mundo onde impera a injustiça estrutural, avança a passos largos a desigualdade, sofremos a perda da compaixão e vivemos uma espiritualidade submissa que não oferece resistência ao sistema.
Os progressos tecnológicos não correspondem à prática dos valores morais de solidariedade, fraternidade-sororidade, justiça, igualdade e liberdade, e tampouco o crescimento econômico terminou com a eliminação da pobreza. Muito pelo contrário: quanto maior o progresso tecnológico e o crescimento econômico, menor a solidariedade e a compaixão, mais longe estamos da justiça e da igualdade e mais difícil resulta a prática da solidariedade e da fraternidade-sororidade.
As desigualdades se reforçam através das diferenças e cada vez vez mais profundas brechas, entre as que cabe citar as seguintes:

a econômicosocial - entre ricos e pobres, que desemboca em aparofobia;

a patriarcal - entre homens e mulheres, que desemboca em feminicídio;

a colonial - entre as super potências e a sobrevivência do colonialismo, que desemboca na manutenção da colonialidade;

a ecológica - provocada pelo modelo de desenvolvimento técnico científico depredador da natureza que a converte em mercadoria e desemboca em ecocídio;

a racista - entre pessoas nativas e estrangeiras que desemboca em xenofobia;

a afetivosexual – entre heterosexualidade e LGBTQI que desemboca no discurso de ódio contra as identidades afetivosexuais que não respondem ao padrão da heteronormalidade e a binariedade sexual: LGBTQIfobia;

a cognitiva - entre os conhecimentos qualificados de científicos, por uma parte, e os saberes dos povos originários e os nascidos das lutas populares, que da lugar à injustiça e desemboca em epistemicidio;

Global - entre o Norte e o Sul, que desemboca em surcidio (palavra de criação própria);

a religiosa - entre pessoas crentes e não crentes, entre sistemas de crenças hegemônicas e contra-hegemônicas, entre religiões ricas e religiões pobres, que resulta na perseguição a pessoas não crentes e ao desprezo pelas religiões e espiritualidades dos povos originários;

a digital - entre aqueles que tem acesso à internet e aqueles que não tem, que resulta em múltiplas discriminações laborais, culturais, educativas;

a geracional - entre as pessoas adultas e as crianças sob o prisma adultocentrista que resulta na sistemática transgressão dos direitos da infâcia;

a rejeição às diversas pessoas funcionais pelo falso paradigma da “normalidade”.
Especialmente dramáticos são os fenômenos de desigualde social, injustiça ecológica, injustiça de gênero, prática da necropolítica e teoria do descarte por parte do neoliberalismo, injustiça cultural e falta de reconhecimento, injustiça cognitiva e suas manifestações de racismo epistemológico. São fenômenos que estamos vivendo com severidade durante as últimas décadas, junto a pandemia provocada pelo coronavírus que estamos sofrendo em todo o mundo com especial crueldade.
Tais situações, cujos efeitos negativos se deixam sentir de maneira especial na região do Sul global e entre as maiorias populações e os setores mais vulnerabilizados, não podem desembocar em atitudes fatalistas, vitimistas ou de aceitação da realidade alegado que “as coisas são como são e não podem ser de outra maneira”. Muito pelo contrário: exigem ativar a espiritualidade da resistência, uma espiritualidade de olhos abertos e de militância ativa através dos movimentos sociais frente à “globalização da indiferença” (Francisco) e aos diferentes sistemas de dominação que atuam de forma coordenada e, além disso, exigem uma coordenação de espiritualidade e lutas de resistência; o capitalismo em sua versão neoliberal, o colonialismo, que sobrevive em suas formas mais sutis, o antropocentrismo, que converte o ser humano não no cuidador da natureza, mas sim em seu depredador; a supremacia branca, que hierarquiza a humanidade em função de sua procedência étnica-cultural priorizando a população branca, os fundamentalismos, que impõem um pensamento único sempre ao serviço dos poderes hegemômicos, o imperialismo, que submete aos povos e os converte em colônias, e o belicismo, qua atua sob a lógica de amigo-inimigo.
Uma das práticas de resitência a seguir diante de tamanhos sistemas destrutivos da natureza, da humanidade, do pluriverso religioso e legitimadores da manutenção da injustiça estrutural é a compaixão com as vítimas que, como afirma o filósofo Aurelio Arteta, é uma “virtude sob suspeita”. Em seu uso habitual a palavra “compaixão” remete a sentir pena e pesar caindo em uma espécie de sentimento distante da práxis, tende-se a identificar com uma vaga simpatia que se adota de dentro ou de cima com uma atitude de superioridade, costuma viver como comportamento moralista que encobre e legitima dita situação. Muitas vezes se reduz a lamentar-se das desgraças alheias sem se colocar do lado daqueles que as sofrem, deplorar os sofrimentos das pessoas que os padecem sem se solidarizar com elas e não mover nem um dedo para evitar esses sofrimentos, nem lutar contra as causas e as pessoas que os provocam. E tudo isso, com frequência, a partir de uma atitude culpabilizadora das pessoas sofredoras, que desemboca em humilhação e leva a ditas pessoas a dizer: “não tenha pena de mim”.
É tarefa urgente, por tanto, liberar a compaixão de suas falsas imagens, de sua prática passiva e devolver-lhe seu verdadeiro sentido que é colocar-se do lado dos outros, no lugar das pessoas sofredoras em uma relação de igualdade e empatia, assumir a dor dos outros como sua própria, sofrer não só com os outros, mas nos outros, até se identificar com aqueles que sofrem. A compaixão requer participar ativamente no sofrimento alheio, conhecer, pensar, ver a realidade com os olhos, a mente e o coração das vítimas, sem cair no vitimismo paralizador e lutando contra as causas que o produz.
A compaixão é uma “paixão” que se dirige espontaneamente ao sofrimento dos outros e da natureza oprimida, nos fazendo verdadeiramente humanos e pessoas no cuidado da natureza da qual fazemos parte. Tal atitude requer levar a sério o mal que padecem os demais e o que nós temos padecido ou podemos padecer, e não banalizar-lo. Para ser uma pessoa compassiva não é necessário que exista um afeto prévio, é suficiente que consideremos aqueles que sofrem como iguais. Este é o verdadeiro significado de compaixão como princípio ético e como virtude a praticar tanto na esfera pessoal como na pública.
A compaixão não pode se limitar a curar as feridas das vítimas. Como afirma o teólogo martir do nazismo Dietrih Bonhoeffer, “não estamos simplesmente para vendar as feridas das vítimas sob as rodas da injustiça, estamos para travar essa mesma roda com a alavanca da justiça”.
Por sua vez, é preciso posicionar a compaixão no contexto sociocultural e político concreto onde se deve paticar para não oferecer uma imagem idealizada e idealista ou um discurso abstrato que fica nas nuvens e não tem fundamento na história. É necessário, também, destacar sua dimensão cívicopolítica revolucionária, sua relação com a justiça, a solidariedade, a igualdade de gênero e sua tradução em uma mudança pessoal em uma transformação estrutural, fugindo assim do caráter conformista e legitimador da ordem estabelecida geradora do sofrimento eco-humano, individualista e ahistórico, no qual se tem enclausurado.
É preciso conceder especial relevância à compaixão e ao amor na esfera política, onde não são suficientes apenas as normas jurídicas, como afirma a filósofa americana Martha Nussbaum: compaixão e amor são a ponte entre as normas da justiça e as situações sociais injustas. A compaixão dota à moralidade pública dos elementos essenciais da ética sem os quais a cultura pública estaria vazia. É preciso falar, portanto, de compaixão e amor politicamente eficazes.
Finalmente, é necessário incorporar a compaixão à memória histórica das vítimas. Uma “memória subversiva”, como reivindicou Walter Benjamin, que não se limite a lembrar passivamente os horrores do passado, mas que reabilite as vítimas, que devolva sua dignidade, repare os crimes cometidos impunemente, denuncie os agressores e se comprometa a não repeti-los.
Concluindo, do ponto de vista cívico a compaixão é uma virtude pública; do ponto de vista político, uma virtude revolucionária; do ponto de vista religioso, um princípio teológico que subverte o discurso teológico tradicional; do ponto de vista da espiritualidade uma força de resistência frente ao poder opressor e uma mística de olhos abertos e solidários, buscadora dos rostos das pessoas e coletivos doloridos e sofredores.