Esta «Agenda» é para quem tem sede

Esta «Agenda» é para uso de quem tem sede

Nancy Cardoso Pereira


Somos desiguais, quase desonestos e dissimulados. Nossos esforços por igualdade nunca superam nossa desonestidade política e nossa cultura de aceitação das disparidades. Falo de esforço porque reconheço ao longo da historia acúmulos de vontades e consensos de prioridades que consumiram gerações no trabalho de base, na organização popular e construção das mediações para sermos um país melhor, reconciliado consigo mesmo, com seu território.

Mas nossos acúmulos e consensos sempre se deram num quadro de luta de classes feroz, antigo, crônico fazendo oscilar as mediações entre a colaboração e a resistência. Uma década depois de alterarmos o quadro clássico da política partidária ainda não revertemos as sistêmicas desigualdades, conseguindo no máximo alargar as formas de acesso as políticas básicas ao mesmo tempo alargando os mecanismos de concentração de terra, de renda e de oportunidades.

A conta não fecha. Se 2 + 2 é 4 (quatro) a resposta dissimula os fatores da somatória: se 2 gotas de água e 2 gotas de óleo não se misturam o resultado continua sendo uma gota de água e uma gota de óleo e o 4 (quatro) anunciado e festejado nada mais é que desonestidade e dissimulação.

O que dizem os números: dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que considerou indicadores do Banco Mundial (Bird), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), IBGE, PNUD e da ONU:

• A distribuição de renda no Brasil é a terceira pior do mundo, em que os 10% mais ricos ganham 28 vezes a renda dos 40% mais pobres; apesar do aumento dos gastos sociais nos últimos dez anos, apresenta uma baixa mobilidade social e educacional entre gerações.

• Os 10% mais ricos da população brasileira se apropriam de cerca de 50% da renda total do país, e os 50% mais pobres detêm apenas 10% da renda do país.

• No Brasil, 5,1% dos descendentes de europeus vivem com menos de 1 dólar por dia. O porcentual sobe para 10,6% em relação a índios e afros.

• Em 2011, o IDH brasileiro chegou a 0,718 ponto, valor 0,003 ponto superior ao de 2010. O desempenho fez o país ultrapassar a nação caribenha de São Vicente e Granadinas e alcançar a 84ª posição entre 187 -países quando são considerados indicadores que medem a desigualdade social IDHAD (Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade) o Brasil despenca para 0,519 inferior ao de muitas nações que estão atrás do país no ranking do IDH, como Gabão (com IDHAD de 0,543), Sri Lanka (0,691) e Uzbequistão (0,549).

• O Brasil tem seu desempenho prejudicado quando a desigualdade entre homens e mulheres é leva-da em conta. Aí o país fica na 80ª posição entre 146 países.

• Práticas adotadas pelo Brasil nos últimos anos, como a expansão no acesso à água e a criação do Bolsa Família, programa de transferência de renda que beneficia famílias mais pobres que aplica apenas 0,4% do PIB (Produto Interno Bruto) do país.

• chegamos de volta no 4 (quatro): justificar é desonesto, festejar é dissimulação.

• No orçamento de 2011, o valor destinado ao Bolsa Família foi R$ 13,4 bilhões atendendo a 13,1 milhões de famílias, com valores de R$ 32 a R$ 242 (www.mds.gov).

• As agências de pesquisa têm Bolsa: o CNPq aplicará um investimento de R$ 1,43 bilhão para conceder 35 mil bolsas. Já a Capes concederá 40 mil bolsas, com recursos de R$ 1,73 bilhão. No total serão investidos R$ 3,16 bilhões. Esses 75 mil estudantes receberão entre US$ 2,300 a 1.300 (Ministério da Ciência e Tecnologia).

• Sem poder fazer escolha entre a distribuição básica de renda e o investimento em ciência e tecnologia, que atende prioritariamente às elites educacionais do país, claramente as políticas se distanciam na qualidade do alcance e na quantidade dos valores investidos.

• A reprodução da desigualdade se mantém no caráter elitista do modelo de desenvolvimento que investe na formação dos filhos e filhas da elite esperando, num passe quase de mágica, quase mecânico, que o país modernizado e tecnológico caminhe para a superação da miséria e da desigualdade, sem que rupturas estruturais e mecanismos reparadores efetivos sejam acionados a partir dos interesses das maiorias subalternas. Mais é menos porque não desconfia da circulação desigual dos recursos, das prioridades e dos interesses.

• 2 mais 2 não “é” 4!

Uma “agenda” comum na luta pela igualdade

Eu e você nesta Agenda Latino-Americana 2013 vamos dividir o ano em meses e semanas. Os dias. Vamos marcar nossas marchas, reuniões, ações, orações, passeios, romarias, festas e conferências. Nosso tempo de fazer nada. Mesmo sem nos ver a agenda vai nos oferecer um espaço comum que vamos compartilhar de longe e de perto.

Vão conosco os mártires, homens e mulheres do território comum: América Latina. Gente que habita nossa agenda afetiva e política. E a agenda nos lembrará de lugares e datas, acontecimentos grudados na memória e que combinamos entre nós lembrar porque vitais para a esperança ou doloridos e por isso mesmo não podem mais acontecer. E cada um, cada uma vai marcar telefones, datas de aniversário e um encontro amoroso, uma consulta médica, um pagamento pra fazer, e a inadiável tarefa da igualdade.

No meio de tanta vida precisamos confirmar alguns compromissos que já compartilhamos faz tempo e que queremos seguir como companheiros e companheiras na fidelidade ao Deus dos pobres, meninos e meninas, dos muitos povos que somos, e a terra. Rabisca aí num canto estas fidelidades entremeadas nos seus afazeres e vamos.

«Aninha e suas pedras»

Não te deixes destruir… / Ajuntando novas pedras / e construindo novos poemas. / Recria tua vida, sempre, sempre. / Remove pedras e planta roseiras e faz doces. / Recomeça. / Faz de tua vida mesquinha um poema. / E viverás no coração dos jovens / e na memória das gerações que hão de vir. / Esta fonte é para uso de todos os sedentos / Toma a tua parte. / Vem a estas páginas / e não entraves seu uso / aos que têm sede.

[Cora Coralina, outubro 1981].

1. “Não te deixes destruir”: um outro mundo é possível! O capitalismo não é a única maneira de organizar a vida. Nossa agenda comum vai expressar esta busca teórica e prática, a partir dos grupos de base e também nas articulações mais amplas capazes de aglutinar os interesses das maiorias pobres: organizar a produção e o consumo assumindo as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Escreve aí na sua agenda: não nos rendemos, não nos vendemos e “recriamos nossa vida, sempre, sempre”, na luta do povo, na luta da terra.

2. “Remove pedras, planta roseiras, faz doces”: nossa organização deve buscar formas solidárias de organização da economia; nossas iniciativas locais marcadas pela autogestão e cooperação são valiosas e precisam conti-nuar sendo articuladas com as lutas gerais insistindo na reforma agrária, no controle dos/das trabalhadores/as sobre os processos de produção, na distribuição e no consumo que garanta a qualidade de vida das maiorias, na defesa da soberania alimentar e energética ecológica. Nossa “agenda” deve expressar nossa capacidade de agir em nossos “lugares” articulando as lutas por mudanças estruturais, sem esquecer que transitamos para um “outro mundo possível” já superando entre nós todas as formas de racismo, sexismo e discriminação.

3. “O coração dos jovens e a memória do futuro”: autogestão, ecologia e economia solidária devem ser rabiscadas lado a lado em nossa “agenda”: nosso calendá-rio é este concreto diante de nós, mas se projeta também na criação de modos de vida futuros. Este futuro não nos será dado, mas será fruto de nossa mundialização da luta e da esperança por uma agricultura orgânica camponesa e suas cooperativas agrárias, por transportes coletivos, por moradia digna, por energias alternativas e pela satisfação igualitária e democrática das necessidades das maiorias. Lutas ecossociais contra as multinacionais destruidoras do meio ambiente e contra as políticas neoliberais que negam os direitos das populações tradicionais e das mulheres.

4. “Fonte para uso de todos os sedentos... Toma a tua parte”: Três palavras vizinhas se atritam aqui: economia, ecologia, ecumenismo. As três compartilham o “oikos”: unidade básica social (casa, mas também mundo). Simplificando: economia > oikos + nomos (lei/norma); ecologia > oikos + logos (compreensão/estudo); ecumenismo > oikos + forma do partícipio passivo feminino (habitado/habitantes). São assim três formas de estar no mundo e de organizar a vida no mundo. Enquanto a economia dispõe, normatiza sobre o modo de produção da vida na relação com o mundo, a ecologia se ocupa de entender estas relações suas lógicas e implicações e o ecumenismo se pergunta pelas formas (objetivas e subjetivas) de ocupação/vivência do mundo. A religião é uma das linguagens disponíveis das formas sociais de organização da vida. A religião hoje virou mercadoria, e os templos nada mais são que shoppings de desonestidade e enganação. Até mesmo o evangelho de Jesus é confiscado pelo mercado justificando as desigualdades dramáticas pelo esquema corrupto das promessas individuais e gorjeios espirituais. Nossa “agenda” comum deve expressar nossos espaços de mística e espiritualidade da luta pela libertação e a igualdade. Afirmando o ecumenismo nos desvencilhamos da mesquinharia movida a lucro das igrejas. Bebemos em “nosso próprio poço” na fidelidade do evangelho dos/as pobres e não aceitamos que a religião continue justificando a desigualdade. Que a religião do mercado “Não entrave o acesso dos que têm sede”.

Que venha 2013: nós não temos nada mas nós partilhamos tudo (2 Cor 6).

 

Nancy Cardoso Pereira

Porto Alegre, RS