Fé e política

Fé e política

Como se relacionam  

Leonardo Boff


Há dois tipos de política. Uma escrita com P maiúsculo e outra com p minúsculo. Ou então a Política social (P) e a política partidária (p).

1. Política social (P)

É tudo o que diz respeito ao bem comum da sociedade; ou então é a participação das pessoas na vida social. Assim por exemplo, a organização da saúde,da rede escolar, dos transportes, a abertura e a manutenção de ruas, de água e esgoto etc., têm a ver com política social. Lutar para conseguir um posto de saúde no bairro, se unir para trazer a linha de ônibus até no alto do morro, participar de uma manifestação no centro da cidade pela reforma agrária, pelo solo urbano, contra a violência policial, é fazer política social. Essa política visa o bem comum de todos ou de um grupo, cujos direitos estão sendo desrespeitados. Definindo de forma breve podemos dizer: política social ou Política com P maiúsculo significa a busca comum do bem comum.

2. Política partidária (p)

Significa a luta pelo poder de estado, para conquistar o governo municipal, estadual e federal. Os partidos políticos existem em função de se chegar ao poder, seja para mudá-lo (processo revolucionário), seja para exercê-lo assim como se encontra constituído (governar o estado que existe). O partido, como a palavra já o diz, é parte e parcela da sociedade não toda sociedade. Cada partido tem por trás interesses de grupos ou de classes que elaboram um projeto para toda a sociedade. Se chegarem ao poder de estado (governo) vão comandar as políticas públicas conforme o seu programa e sua visão partidária dos problemas.

Com referência à política partidária, é importante considerar os seguintes pontos:

-ver qual é o programa do partido;

-ver como o povo entra neste programa: se foi discutido nas bases; se atende aos reclamos históricos do povo; se prevê a participação do povo, mediante seus movimentos e organismos, na sua concepção, implementação e controle;

-ver quem são os candidatos que representam o programa: que biografia têm, se sempre mantiveram uma ligação orgânica com as bases,se são verdadeiramente aliados e representantes das causas da justiça e da mudança social necessária ou se querem manter as relações sociais assim como são, com as contradições e até injustiças que encerram.

Bastam estes poucos critérios para se perceber o perfil do partido e dos candidatos, de direita (se querem manter inalterada a relação de forças que favorece os que estão no poder), de esquerda (se visam mudanças estruturais que marginalizam as grandes maiorias) ou de centro (os partidos que se equilibram entre a esquerda e a direita, procurando sempre vantagens para si e os grupos que representam).

Por ser parte e não toda a sociedade, a política partidária é, por si mesma, conflitiva; os políticos são adversários, não inimigos, porque têm projetos e programas diferentes. Mas tem que ficar claro aquilo que Max Weber disse em seu famoso texto A Política como Vocação: «Quem faz política busca o poder. Poder, ou como meio a serviço de outros fins ou poder por causa dele mesmo, para desfrutar do prestígio que ele confere». Esse último modo de poder político foi exercido historicamente por nossas elites a fim de se beneficiar dele, esquecendo o sujeito de todo o poder que é o povo.

3. A fé e sua dimensão política

A fé tem a ver com Deus e sua revelação. Mas ela está dentro da sociedade e é uma das criadores de opinião e de decisão. Ela é como uma bicicleta; possui duas rodas mediante as quais se torna efetiva na sociedade: a roda da religião e a roda da política.

A roda da religião se concretiza pela oração, pelas celebrações, pelas pregações e pela leitura das Escrituras. Por esses meios se formam as convicções que estão na base de decisões concretas.

A segunda roda é a da política. A fé se expressa pela prática da justiça, da solidariedade, da denúncia das opressões. Como se vê, política aqui é sinônimo de ética. Temos que aprender a nos equilibrar em cima das duas rodas para poder andar corretamente.

A Bíblia considera a roda da política (ética) como mais importante que a roda da religião como culto (cf Mt 7,21-22; 9,13; 12,7; 21,28-31; Gl 5,6; Tg 2,14). Sem a ética, a fé fica vazia e inoperante. São as práticas e não as prédicas que contam para Deus. Não adianta dizer «Senhor, Senhor» e com isso organizar toda uma celebração; mais importante é fazer a vontade do Pai que é amor, misericórdia, justiça, coisas todas práticas (cf Mt 7,21), portanto, éticas, como participar de uma manifestação operária, entrar num sindicato ou num grupo de direitos humanos.

Há muitas relações da política com a fé e vice-versa como, por exemplo, com o Estado, com a hierarquia da Igreja, com as comunidades de base e com os leigos. Queremos analisar a relação da fé com o cidadão individual e depois com o cristão leigo militante.

4. Fé, política e cidadão individual

No nível concreto, fé e política se encontram juntas na vida das pessoas. A política é uma dimensão da fé concreta da pessoa na medida em que vive a fé nas suas duas rodas: fé como culto e fé como ética, como prática de justiça e como espiritualidade. A fé inclui a política, quer dizer, um cristão pelo fato de ser cristão, deve se empenhar na justiça e no bem-estar social; também deve optar por programas e pessoas que se aproximem o mais possível àquilo que entendeu ser o projeto de Jesus e de Deus na história.

Mas a fé transcende a política, porque a fé se refere também à vida eterna, à ressurreição da carne, à transformação do universo, coisa que nenhuma política social e nenhum partido ou estado podem prometer. Nós queremos uma sociedade justa e fraterna e ao mesmo tempo queremos a ressurreição da carne e a vida sem fim e feliz por todo o sempre. Mas a fé não é somente boa ao nos apresentar uma promessa, é boa também para inspirar uma sociedade humana, justa e tolerante.

A passagem da fé à política partidária não é direta. Quer dizer, do evangelho não se deduz diretamente o apoio a um determinado partido e o dever de votar numa pessoa, nem quanto deve ser o salário mínimo. O evangelho não oferece soluções, mas inspirações para que se possa escolher bem um partido e criar um salário digno. Mas para isso precisa-se de ferramentas adequadas de análise da realidade social, de movimentos e instituições, partidos e programas que permitem dar corpo à fé como prática ética.

5. Fé, política e leigo militante

O leigo é membro do Povo de Deus e da comunidade cristã. É um cidadão qualificado pela fé e pela militância. Iluminado por sua fé, pode e deve fazer política partidária. Portanto, nada de receber ordens dos bispos e dos padres para apoiar determinado partido (política cristã). A política deve ser laica e não clerical. A fé cristã e o evangelho oferecem critérios de orientação política, como alguns dos quais queremos enumerar.

- uma política libertadora: não basta reformar a sociedade que está aí; importa um outro modelo de sociedade que permita mais inclusão mediante a participação, a justiça social e a dignidade; ora, a libertação quer tal projeto, coisa que uma simples reforma não consegue;

- uma política libertadora a partir das maiorias pobres e excluídas: deve começar bem em baixo, pois assim não deixa ninguém de fora; se começar pelos assalariados ou pela burguesia, deixa de fora, de saída, quase metade da população excluída.

- uma política libertadora que use métodos libertadores, quer dizer, que use processos participativos do povo, de baixo para cima e de dentro para fora; essa política pretende outro tipo de democracia: não apenas a democracia representativa/delegatícia ( em cada quatro anos temos o direito de eleger um presidente e delegar-lhe poder, sem voltar a controlá-lo) mas uma democracia participativa pela qual o povo com suas organizações ajuda a discutir, a decidir e a resolver as questões sociais. Por fim uma democracia sócio-cósmica que incorpore como cidadãos com direitos de serem respeitados a Terra, os ecossistemas e os seres da criação com os quais mantemos relações de interdependência.

- uma política que use meios transparentes que os poderosos dificilmente podem usar, como a verdade, a resistência ativa, a razão solidária. Para a criação de uma sociedade justa e pacífica, os meios devem ser também justos e pacíficos...

A militância exige competência, conhecimento da realidade social e também uma espiritualidade adequada para perceber os dons do Reino se realizando no mundo na medida em que há mais dignidade e melhor qualidade de vida. Em função disso, surgiu em muitas dioceses o Movimento Fé e Política, que visa melhorar a participação dos cristãos no campo da política (estudando e se reciclando) e no campo da fé (alimentando a mística e aprofundando teologicamente as questões).

Conclusão: a memória perigosa de Jesus

Os cristãos não devem nunca esquecer que somos herdeiros da memória perigosa e libertária de Jesus. Por causa de seu compromisso com o projeto do Pai e com os humilhados e ofendidos de seu tempo, foi um perseguido, feito prisioneiro político, foi torturado e condenado na cruz, o pior castigo político-religioso de seu tempo. Se ressuscitou foi para, em nome do Deus da vida, animar a insurreição contra uma política social e partidária que penaliza o povo, especialmente, os mais pobres, eliminar os profetas e os pregadores de uma justiça maior e reforçar a todos que querem uma sociedade nova com uma relação libertadora para com a natureza, para com todos e para com Deus.

 

Leonardo Boff

Petrópolis