Fundamentalismo: do embate teológico à militância política

 

Eduardo Simões

Fato é que os EUA sempre foram um “laboratório da relação entre escatologia e questões sociais” (ROCHA, 2010, p. 206). Em muitos momentos, há uma forte interpenetração entre o discurso político e o religioso. As expectativas escatológicas e a vida pública se misturam nessa espécie de “religião civil”. Desde os “pais peregrinos”, com seu anseio de criar o “reino de Deus” na terra, é possível observar essa íntima relação entre escatologia e política se desenvolvendo.

No século XIX, contudo, esse otimismo messiânico ainda era obstaculizado pela questão da escravatura. Com a vitória da União sobre os Confederados e, por conseguinte, o fim da escravidão, o caminho estava aberto para um futuro glorioso. Industrialização, avanço tecnológico, desenvolvimento da ciência moderna: tudo parecia contribuir para o advento do “reino milenar” instaurado pela igreja (MARSDEN, 1991, p. 9).

Contudo, a modernidade traz consigo uma nova espécie de pluralismo e suas crises subjetivas e intersubjetivas de sentido. As igrejas protestantes nos EUA reagiram de formas diferentes: por um lado, o esforço de salvar o protestantismo, conciliando-o com os desafios à fé; por outro, há um recrudescimento e uma oposição militante àqueles aspectos da Modernidade que ameaçavam a “pureza da fé”. A primeira forma de reação ficou conhecida como liberalismo teológico ou modernismo; enquanto a segunda: fundamentalismo. A reação conservadora ao modernismo se apegava ao literalismo bíblico e a escatologias escapistas como o pré-milenarismo dispensacionalista.

Na década de 1930, o fundamentalismo parece ter perdido a luta contra o modernismo, graças a conotação pejorativa que o termo adquiriu depois de episódios hilários como o “julgamento do macaco”respeito do ensino do darwinismo nas escolas públicas. No entanto, logo o fundamentalismo começa a ganhar expressão novamente com o surgimento de uma ala mais moderada que ficaria conhecida como new evangelicals ou neo-evangelicals e mais tarde apenas evangelicals, representados pelo pastor Billy Graham. A grande diferença estava na perda do separatismo e militância, assim como uma tentativa maior de diálogo com a modernidade. A maior de todas as razões dessa emergência evangélica foi o sucesso desse grupo no uso dos meios de comunicação.

Apesar das divisões internas, evangélicos e fundamentalistas começaram a ter, a partir da década de 1970, uma inserção significativa nos lares norte-americanos. O que fez com que logo se tornassem uma coalizão, tendo um sistema ideológico próprio. E essa é uma década de crises que assiste a uma transição para o capitalismo global, crise econômica do petróleo (1973), questionamento dos valores tradicionais, maior permissividade moral entre os jovens, lutas pelos direitos civis, e a constante “ameaça do comunismo” (ORO, 1996, p. 77-78).

Esse é o contexto das “guerras culturais” e criação da Moral Majority por Jerry Fawel. O neofundamentalismo, portanto, difere do fundamentalismo clássico cuja preocupação era com o debate teológico, a defesa da interpretação literal da Bíblia. O neofundamentalismo preocupa-se com a “consciência” da nação norte-americana, a defesa dos “valores familiares”. Desta forma, “o neofundamentalismo representa uma tentativa de fazer reviver uma comunidade de sentimentos religiosos e políticos no tempo do individualismo exacerbado” (PACE apud ORO, 1996, p. 91). O neofundamentalismo é um sistema ideológico completo, ou seja, por trás do discurso religioso há uma agenda ideológica política. Assim, por meio de uma “transfiguração simbólica”, onde o relativo é absolutizado, a militância neofundamentalista identifica o pensamento de um grupo social: a classe média norte-americana economicamente empreendedora, política e moralmente conservadora. Não entram na pauta fundamentalista o sistema econômico e questões ambientais. Por sua vez, ocupam-se com questões morais e religiosas, tais como oposição aos direitos dos homossexuais, ao aborto, ao ensino de evolucionismo nas escolas públicas.

O fundamentalismo, que surgiu como um grupo conservador dentro do debate teológico protestante nos EUA, hoje extrapola os limites eclesiológicos. O neofundamentalismo representa hoje mais um grupo político que simplesmente religioso. Em grande parte, porque, como foi visto, a religião constitui uma dimensão muito importante na vida política norte-americana e, não raras vezes, os discursos políticos se imiscuem com os discursos religiosos. Alguns motivos específicos para essa mudança interna devem ser observados: a militância; o uso eficiente dos meios de comunicação; a constituição de um “sistema ideológico singular”.

O fundamentalismo sempre teve o caráter militante, desde quando se insurgiu contra aquilo que parecia, ao seu modo de ver, uma ameaça às igrejas. Igualmente, sempre se valeu dos meios de comunicação para veicular suas ideias. No entanto, entre as décadas de 1940 a 1970, o uso dos meios de comunicação associados ao surgimento de uma ala mais moderada, os evangelicals, permitiu que o fundamentalismo tivesse uma ascendência maior dentro dos lares norte-americanos. Logo, isso engendrou um poder de mobilização política maior. O que de fato ocorreu. O conservadorismo prestou-se ao papel de “superego” da “consciência da nação” em face da crise em diversos setores da sociedade, quando as mudanças comportamentais se operavam de forma acelerada. Nesse período promoveram-se campanhas contra o aborto, contra a proibição das orações nas escolas públicas. O que também não teria acontecido sem a afinidade eletiva entre o fundamentalismo religioso e o conservadorismo da classe média.