HAITI: UMA DÉCADA DEBAIXO DOS ESCOMBROS.

 

Beauplan Dérilus

Quem não se lembra daquele 12 de janeiro de 2010? Eram, exatamente, 4:53:09 da tarde,

quando surgiu um terremoto de magnitude 7.0 que deixou mais de trezentos mil (300.000) mortos e

trezentos e cinquenta mil (350.000) feridos. Aquele dia, o impensável se fez história visível, o inimaginável se fez possível frente aos olhos do mundo. Aquele dia mudou as histórias que contávamos entre

nós e que contávamos ao mundo. Chegou, então, uma experiência sem promessa alguma, a não ser a da

catástrofe. Segundo Marc Louis Bazin, aquele dia foi “uma catástrofe dentro da catástrofe”. A impotência e a vulnerabilidade chegaram como uma constante ameaça.

Não há palavra alguma que consiga apagar as cicatrizes que aquele terremoto deixou no coração de cada haitiano(a). Frente ao drama humano, [às vezes] só o silêncio é digno; só as palavras do

silêncio são válidas. Convém se perguntar: Que leitura fazer sobre o Haiti de hoje? O que temos feito da

oportunidade que nos ofereceu a dita tragédia para superarmo-nos e sermos melhores? Onde estamos

hoje como povo? De onde fazer a pergunta sobre Deus, hoje, no Haiti?

À primeira vista, não se tem feito grande coisa. Se a solidariedade mundial foi gigantesca, sua

efetividade foi, no meu ponto de vista, imperceptível. Foi anunciada de forma espetacular; terminou

convertendo-se, como disse Raúl Peck, em uma “assistência mortal”. Assim, produziram-se duas chaves

de leitura. Primeiro, a emoção tomou conta de tal forma, que até impediu que se pensasse e se estabelecesse uma verdadeira estrutura de desenvolvimento em longo prazo. Tratar um drama sob o registro

emocional não garante nenhum objetivo real. Segundo, o oceano emocional sobre o qual navegou aquela assistência reduzia (e reduz até hoje) o povo do Haiti ao estado parasitário. Certamente, valorizavase e solidarizava-se com o povo que sofria, mas privando-o (até a atualidade) de suas potencialidades e

autonomia. Com isso, a vantagem da ajuda humanitária é bem mais uma grande desvantagem para o

crescimento autônomo do Haiti. De fato, o que importa para a Comunidade Internacional é a ajuda

humanitária ou o que deseja e pensa o povo haitiano? Por que quem financia também deve mandar?

Respeita-se o “livre arbítrio” desse povo? Convém dizer que a solidariedade da Comunidade Internacional, se quer ser de verdade solidária e frutífera, deve ser de outra maneira.

Agora, em que campo e em que modalidade a dita solidariedade poderia ter sido mais eficaz?

Sem titubear, uma ajuda mais eficaz seria no campo de um desenvolvimento em longo prazo, focada na

educação, no investimento, na construção de infraestruturas e superestruturas que permitiriam a muitos obter, primeiro, um diploma universitário e conseguir depois, e logo, um trabalho digno. Todo projeto de desenvolvimento emotivo está, de antemão, fadado ao fracasso. Psicologicamente alguns filhos

(as) do Haiti costumam pensar que é somente a Comunidade Internacional que pode promover soluções

a seus problemas.

Por um lado, a ajuda humanitária, com as múltiplas ONGs (Organizações Não Governamentais)

presentes no país, representa uma incapacidade que impede que o povo cresça e tome conta de si

mesmo e por si mesmo. As ONGs querem promover soluções, sem ter às vezes a menor ideia do problema em suas raízes. Por outro lado, a presença da Comunidade Internacional no Haiti provoca (ocasionalmente) desgraça e tragédia. Dez meses depois do terremoto houve um surto epidêmico de cólera

que deixou mais de 8 mil mortos e 650 mil afetados. Tal epidemia foi introduzida no Haiti pela MINUTSHA (Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti), presente no país desde março de 2004.

Sua missão foi estabilizar o país, mas ao final, não fez mais que desestabilizar toda uma população já

desamparada.

Logo, com aquela tragédia se esperava uma mudança profunda de todo haitiano. Via-se nela

uma oportunidade para começar a fazer as coisas de outra maneira. Mas estou consciente de que ainda

estamos longe desse ideal. O 12 de janeiro de 2010 deveria ter sido uma verdadeira oportunidade de

mudança de espírito, para renascer e conceber uma nova vida no Haiti; uma oportunidade para reconstruir, não só os edifícios, mas também, as mentalidades da mulher e do homem haitiano. Aquela data

devia ser uma experiência transcendental, incomparável, o domingo de ressurreição do povo haitiano.

Se bem não somos todos culpados da penosa vida na qual seguimos vivendo, sim, somos todos responsá-

 veis. Responsáveis de deixar passar a oportunidade que nos deu aquele terremoto para transformar

nossos corações.

É doloroso ver que o Haiti, apesar daquelas enormes expectativas de solidariedade, não se

levantou. Da cólera á cegueira individualista na qual nos movemos e nos estancamos. Depois de 10

anos, é hora de nos orientarmos a um novo projeto. Um projeto que, por um lado, exige uma forte dose

de esperança e, por outro, convida a eleger uma metodologia humana sem demagogia, mesquinhez nem

engano, para implantar-se na vida haitiana.

A situação caótica no Haiti atual nos faz sentir que continuamos sob os escombros. Os escombros da corrupção estão por toda parte, em todos os níveis e em todas as instituições. A realidade da

sociedade nos permite afirmá-lo. Por exemplo, a situação política desconcertada, ao ponto de produzir

desordem e apatia. Isso parece uma peça de teatro na qual o trágico se mistura com o cômico. Os partidos políticos crescem como fungos. A marcha até o precipício e o desabamento parece ser o novo

motor da consciência política. Ainda mais específico, as duas Câmaras, com seus deputados e senadores, se convertem na instituição do “vazio de pensamentos” onde há uma única lógica: a da teatralização. Em resumo, dizer que as coisas mudaram ou melhoraram no Haiti é pura fantasia.

Finalmente, há algo que é digno de preocupação: a questão de Deus. Como falar de Deus depois de 12 de janeiro de 2010? A quem culpar pelas vidas humanas perdidas? Foi vontade de Deus essa

tragédia? Lembro que depois do terremoto muitos gritaram: “Graças a Deus estamos vivos”. E dos que

pereceram, quem é o causador? Outros disseram que foi provocado por Deus para castigar os pecadores

e servidores de Satanás. Dizer-se servidor de Deus e falar dele nesses termos é, primeiro, ridículo, e

segundo, fá-lo passar uma grande vergonha. Então, aqueles que morreram eram mais pecadores que nós

sobreviventes? Que instrumento serviria para medir o nível de santidade de uns ou outros? Por tudo isso,

estamos fadados a superar qualquer ideia desumanizante que tenhamos dele; o Deus de Jesus Cristo

não é um Deus castigador. Dizer que aquela tragédia foi vontade de Deus significa que Ele é muito mau.

Deus nunca deseja o mal para seus filhos(as) e um terremoto em si não mata. São as estruturas que

matam.

Outra pergunta pertinente foi: onde estava Deus em 12 de janeiro de 2010? Uns disseram que

Ele não estava quando isso aconteceu. Por acaso não é Ele o “Emanuel-Deus conosco”? Se não estava,

não é “Emanuel-Deus conosco” e se não o é, não é nosso Deus. Porque, nosso Deus é sempre, e em toda

circunstância de desesperança humana, o “Deus conosco”. Não o deus impávido e distante, ditador de

leis que foge do problema humano, nem o eterno receptor que exige dotes ou sacrifícios no Templo,

mas sim o Deus que não se deixa aprisionar ou possuir, que é pura presença, compaixão e doação. Assim, convém ter muito cuidado na hora de falar de Deus em relação às circunstâncias de uma tragédia

como a de 12 de janeiro de 2010. Não se pode falar de Deus se não a partir do rosto do povo sofrido e

necessitado. É um rosto que interpela ao „eu‟, o repreende, o admoesta, mas também o desperta, o

conscientiza; em suma: o humaniza.

É o necessitado, o ferido, o sofredor, e não o castigo, o que faz compreender a vontade de

Deus.

Em conclusão, honrar a vida e a memória das vítimas daquela tragédia é fazer tudo para que

haja uma sociedade haitiana mais justa. Cada vez que nos distanciamos do caminho da justiça estamos

provocando outro terremoto, e fora da justiça é impossível sair de debaixo dos escombros. Há de se

fomentar a tomada de consciência a fim de que o Haiti se (re)construa. Devemos ter um espírito de

abertura que nos faça crer que outro Haiti é, não somente necessário, mas também possível. É o momento de combater a ignorância institucional, a mediocridade, o conformismo e a emoção que nos faz

perder a razão. Para honrar dignamente a memória dos que pereceram naquela tragédia não temos

outro caminho que não sair já de debaixo dos escombros. Assim poderemos ter em 2030 um Haiti totalmente diferente.