Iluminação ou libertação?

Iluminação ou libertação?

Espiritualidade da não-dualidade ou da libertação?

Comissão Teológica LAtino-americana da ASETT


Há algum tempo o problema está nas ruas. Iniciativas proliferam, promovem-se seminários e cursos sobre a espiritualidade da não-dualidade, mostrando uma visão que se choca com a espiritualidade típica latino-americana, que é a Espiritualidade da Libertação (EL).

Para a EL, o valor mais importante e que de alguma forma conduz aos demais é a libertação, que é um processo histórico de conquista e construção pessoal e social da Liberdade. Para a EL, enxergar esse processo, a partir da perspectiva da fé e com ele se comprometer em sua plenitude, é o ponto central, a experiência fonte da espiritualidade. É, portanto, uma espiritualidade “de libertação”. Nós, cristãos da EL, não procuramos a nossa fonte em orações, devoções ou práticas espirituais que não sejam as do engajamento do Amor na transformação histórica da sociedade, no esforço para construir um mundo diferente, seguindo o modelo da Utopia proposto por Jesus, que é o Reino. Em “nosso próprio poço” fazemos a mais intensa experiência espiritual, o encontro com a profundidade da vida, da história, da Utopia e do Amor.

Algumas manifestações populares da espiritualidade da não-dualidade apresentam uma abordagem extremamente distinta. A principal experiência espiritual não se busca no Amor-Justiça, que se compromete com a história para transformá-la na utopia de um outro mundo possível, mas sim no interior da pessoa: não é essencial se preocupar com o mundo exterior, com a história, menos ainda com a política, ou com conflitos em razão da injustiça humana. Decide-se voltar o olhar e a atenção ao mistério insondável, percebido no silêncio da mente e do coração, até se conseguir a experiência de transcendência: a iluminação, que é experiência mística, estado de alteração de consciência que não pode ser descrito, mas apenas experimentado, que nos enche de paz, felicidade, plenitude e bons sentimentos.

As duas propostas

As espiritualidades populares da não-dualidade caminham em direção oposta à da EL: o importante é olhar para o interior, desligar-se das preocupações humanas, sociais e políticas, fazer silêncio, apagar todos os pensamentos, permanecer como em uma abertura silenciosa para conseguir acolher a experiência espiritual por excelência, ou seja, a iluminação. Este seria o bem supremo e o único do qual precisamos, o unum necesarium, porque somente na experiência de iluminação encontramos forças e capacidade para amar, ter misericórdia pelo próximo e nos comprometermos com a Libertação, que daí se originaria. O mais importante, aquilo do qual tudo deriva, seria a iluminação. Quem a obtém e a experimenta tudo possui.

A partir desse princípio, as espiritualidades de não-dualidade executam um conjunto de formas e métodos de meditação, práticas de silenciamento da mente e técnicas de controle do pensamento a fim de preparar a consciência humana para experimentar a iluminação. Essas técnicas produzem a iluminação que suscita a compaixão com os seres humanos e com a natureza, o que permite nos envolvermos com a libertação. Mas a meta a ser atingida não é a libertação, mas a iluminação pessoal. A abordagem da EL é radicalmente diferente. Ela não está preocupada, primeiramente, em obter algo para a pessoa, para o sujeito. A EL é uma espiritualidade descentrada de si própria, e centrada exclusivamente no Amor-Justiça, que embasa a paixão pela construção do Reino de Deus na história. A EL sonha a mesma utopia de Deus: “Não outro mundo, mas este mesmo, porém totalmente outro”. Este é o fim, o objetivo principal, e em torno dele gira o restante. Isso faz a EL ser a espiritualidade do mundo externo, das ruas, da história, sempre voltada ao exterior, preocupada e interessada “pelo Reino de Deus e por sua Justiça”, diante do qual “tudo o mais nos será dado por acréscimo”, conforme afirmou Jesus.

O que mais preocupa a EL não é a experiência espiritual pessoal, embora ela seja, obviamente, importantíssima; não a alegada iluminação pessoal, mas a construção do Reino, a transformação do mundo em conformidade com o Projeto de Deus, enfim, a Libertação. De alguma forma, essa posição é contrária à das manifestações da não-dualidade. E então: iluminação ou libertação?

Pluralismo profundo: biodiversidade religiosa

Trata-se de duas atitudes profundamente diferentes diante da vida, da história e do Mistério. São distintas formas espirituais e não cabe aqui qualquer debate para saber a “verdadeira” e a “falsa”. Ambas são válidas, pois possuem “carismas” diferentes.

Há pessoas, povos e culturas dotados de uma sensibilidade orientada especialmente para o numinoso, para a experiência espiritual ou mística, o que ocorre por meio da interiorização, do amor experiencial e “silencioso” - aquele que cultiva o silêncio do pensamento. E há igualmente pessoas, povos e culturas - movimentos históricos - arrebatados pela paixão irrefreável da concretização do Amor e da Justiça na história, pela defesa dos pobres, oprimidos e vítimas; não como experiência humana simplesmente ética ou política, mas verdadeira experiência (espiritual e mística) de Deus.

No primeiro caso, os membros dessas religiões e culturas se concentram especialmente na oração, na interiorização, na consciência, no silêncio e meditação, que são suas preocupações centrais, e somente por meio dessas mediações atingem um compromisso social, que geralmente conduz ao assistencialismo e à misericórdia, não tanto à Justiça. Com frequência, desconfiam da dimensão política e das transformações estruturais da sociedade (o “outro mundo possível”).

Madre Teresa de Calcutá, que militava explicitamente contra a Teologia da Libertação, é exemplo emblemático desse tipo de orientação dentro do Cristianismo. Os que creem na segunda alternativa se mostram mais comunicativos, ativistas sociais, militantes comprometidos com a construção de uma nova sociedade, teológica e mesmo psicologicamente marcados por uma estrutura histórico-utópica da existência. Não procuram a santidade no cumprimento de práticas religiosas, ou a busca de um ideal pessoal com o qual se identificar. Caracterizam-se pela “santidade política” (ainda que não canonizada pela Igreja Católica).

Figuras típicas desse modelo seriam, por exemplo, a de Dom Oscar Romero e diversos outros mártires latino-americanos, mártires “jesuânicos”, ou seja, perseguidos, martirizados e assassinados por terem vivido como Jesus, por seu compromisso com o Amor-Justiça, oferecendo sua vida em defesa dos pobres, da transformação da sociedade e da luta contra tudo o que ofende a dignidade do ser humano. Qual dos dois é o melhor caminho? Qual a melhor espiritualidade?

Do ponto de vista do “pluralismo profundo”, é desnecessário responder às perguntas. São duas grandes correntes espirituais, como tantas outras, bem diferentes entre si; são, enfim, manifestações da “biodiversidade religiosa”, a hierodiversidade. Na biodiversidade não há sentido em perguntar qual a “espécie verdadeira”, pois cada uma contribui à sua maneira, influenciando-se reciprocamente, se cruzando e necessitando umas das outras para haver a evolução da vida. Exatamente como na hierodiversidade.

Reconhecer a contribuição da espiritualidade não-dual

Herdeiros do exclusivismo que cultivamos há quase dois milênios, nosso subconsciente coletivo de cristãos nos diz que estamos na “verdadeira espiritualidade”; portanto, naquela desejada por Deus, aquela que não tem nada a aprender com as demais, pois reúne em si tudo o que é preciso. Hoje, a partir de uma postura pluralista, sabemos que não há “religião verdadeira”, pois todas são centelhas da dimensão divina da humanidade. Não há, então, como fechar-se na própria religião ou espiritualidade, acreditando que são completas, não sendo imprescindível o aprendizado com as demais. Sabemos que cada religião tem as próprias limitações, pontos cegos e necessidade de complementação. Disso não difere a EL.

Síntese libertadora e latino-americana

Duas posturas extremas devem ser evitadas: abandonar a EL, deslumbrados pela novidade da não-dualidade, ou fechar-se na EL, crendo que não há nada a aprender com as distintas espiritualidades.

É possível manter-se fiel à própria EL, seguir “bebendo do próprio poço”, e, ao mesmo tempo, abrir-se à sabedoria das espirtualidades que buscam principalmente a iluminação.

Estamos em um momento pluralista e de síntese. Podemos assimilar todo o bem, onde quer que esteja e venha de onde vier, sem deixar de ser o que se é.