Islã e democracia
Islã e democracia
Amina Teslima Al-Jerrahi
“E consulta (Oh!, Maomé) a eles em todos os assuntos de interesse público”, Qur’an, 159.
“Em verdade, Deus não muda a condição de um povo enquanto este não se muda a si mesmo,” Qur’an, XII 11.
Já são muitos os estudos realizados que exploram se o Islã, tem ou não, queda para a democracia como sistema político como sistema político de organização social. Vai ficando claro que a grande maioria dos muçulmanos prefere a democracia como sistema de governo para participar nas decisões que afetam as sociedades onde vivem, segundo mostra, desde 2003, uma ampla pesquisa realizada pelo centro de investigações Pew de Washington. No entanto, as tradições sagradas, em geral, e o Islã em particular –universos orgânicos que abarcam todos os aspectos imutáveis da existência- não podem ser, na verdade, comparadas com sistemas de organização política, que só abordam aspectos variáveis e relativos.
Feito este esclarecimento, podemos dizer que o vínculo disso que chamamos de democracia –e os valores que esta representa- com o Islã, tem raízes profundas. Sem dúvida, no terreno da organização social, participam os principais postulados: inclusão social, eqüidade na pluralidade, justiça social, a prática da tolerância diante da diferença, defesa dos direitos humanos, estímulo da participação social em todos os assuntos da comunidade, respeito às minorias, etc.
Não é de se estranhar esta incessante busca de certeza a respeito de algo tão óbvio. Os numerosos acontecimentos violentos que surgem, cada vez mais com ampla variedade de movimentos extremistas em países islâmicos, em sociedades não islâmicas desinformadas e absolutamente desconhecedoras do Islã, criam uma confusão atroz. Mas também é igualmente evidente que muitas destas polarizações, em algumas, (muitas?) sociedades islâmicas, são produto, precisamente, de violações sistemáticas desses valores. Estes estão na própria raiz do sistema de organização social que propôs a revelação do Islã à humanidade quando nem sequer existia o termo ‘democracia’, e que se atribuem superficialmente ao Islã, com a ilícita licença que oferece a ignorância.
As transgressões das oligarquias do Golfo Pérsico contra a lei sagrada, que impuseram sistemas monárquicos de característica feudal –onde o poder está nas mão de uma minoria que utiliza a religião como instrumento de controle ideológico-, são exemplos dramáticos de quanto puderam se deformar os sistemas sociais em países islâmicos, distanciado-se da revelação do Islã e criando assim este muro nebuloso. No entanto, os fatos, por si mesmos, revelam tendências insuspeitas das populações (quando têm liberdade de opinar), quanto à consciência que expressam espontaneamente (apesar do alto grau de analfabetismo que muitos regimes mantêm, especialmente entre as mulheres) do vínculo primário entre o Islã e o sistema democrático: na Malásia, a democracia é praticada há mais tempo que na Espanha; na Indonésia, onde vivem 180 milhões de muçulmanos, uma mulher, Megawatti Sukarnoputri, foi eleita presidenta; e no Paquistão, uma mulher tão –em aparência ao menos ocidentalizada, como Benazir Bhuto, ganhou duas vezes as eleições gerais.
Além do mais, não se pode esquecer que além da insuspeita perspectiva de gênero, ao abordar o tema que nos toca, no Irã, Bani Sadr foi o presidente eleito por sufrágio universal após a revolução de 1979, e que seu triunfo laico e liberal contra o candidato dos ayatolás demonstrou que os revolucionários iranianos não buscavam, desde esse momento, instaurar uma teocracia.
Atualmente, no Iraque, os apelos à democracia procedem do conselho shia da escola de Nayaf. Como sabemos, o Ayatolá Ali al-Sistani defende que seja um órgão eleito –e não um conselho designado pelos EUA-, o que redija a constituição de todos os iraquianos. Em Bagdá, são muitas as manifestações que já pediram o fim da ocupação e o início de uma democracia legítima.
É um fato irrefutável que, apesar de todas as dolorosas deformações que falseiam e ignoram a proposta divina na hora de organizar o governo comunitário em seu próprio berço, nos inícios do século XXI, a grande maioria dos muçulmanos do mundo elegem os seus governantes pela via eleitoral. Com isto, não se pretende afirmar que os países muçulmanos constituam, atualmente, exemplos democráticos a serem seguidos no mundo, nem que todos estes governos tenham conseguido cimentar suas políticas sobre um terreno livre, plural e democrático fiel aos princípios islâmicos revelados. Tal é o caso da Argélia, Nigéria, Marrocos, Egito, Mauritânia, Turquia, onde existe um regime democrático mediatizado por uma oligarquia militar. Mas é necessário recordar que nem o sagrado Qur’an nem a Sunna profética propõem um modelo unívoco exportável de governo.
O que chamamos ‘democracia’ é um valioso sistema de organização social cujas idéias principais são universais e vêm de tempos remotos. A democracia liberal moderna que tem sua origem nas revoluções da América do Norte (1776) e na francesa (1789), está em contínuo desenvolvimento, revisão e aperfeiçoamento com o fim de combater os desequilíbrios em sua manifestação. Sua aplicação é variável de acordo com as circunstâncias da comunidade na qual se pratica.
O Islã, em troca, estabeleceu princípios que transcendem bastante o variável, o temporal, o transitório, e não exclui de sua luz a todo assunto temporal e relativo da organização comunitária: a não-discriminação por raça, cor, idade, nacionalidade ou traços físicos (“Todos os povos são iguais aos dentes de um pente”); o poder se fundamenta na verdade, não a verdade no poder; a justiça social e o estado de direito; a liberdade de crença e o direito à vida, a propriedade privada, à reprodução e à saúde são liberdades declaradas invioláveis pela escritura sagrada; ninguém pode ser sentenciado por uma violação sem evidência ou, acusado e castigado por violações cometidas por outro; um sistema de conselho para a administração dos assuntos da comunidade.
Já que o Islã considera os indivíduos e as sociedades responsáveis por suas decisões, às comunidades concerne o exercício de auto-governar-se, isto é, de escolher o melhor sistema possível para sua organização social baseada na luz da revelação. Se lhe chamamos democracia, sociocracia ou shurá, é secundário. O importante é determinar e exercer “o absolutamente necessário, o relativamente necessário e o recomendável” em harmonia com os princípios fundamentais que delineiam a revelação: paz, justiça, igualdade, unidade na diversidade, amor, misericórdia extrema, compaixão infinita e solidariedade.
O princípio da Shura (a consulta mútua) é, na realidade, o preceito raíz do Islã sobre o modelo de organização social, que, como órgão de participação de todos os membros da comunidade islâmica nas decisões coletivas, que constitui o ponto de partida para um diálogo frutífero entre o modo de organização social islâmica e o modelo democrático: “...[os crentes] têm por norma consultar-se entre si” (Qur’an, 42, 38).
Em outro verso, Al-láh se dirige ao Profeta Maomé nos seguintes termos: “E consulta a eles em todos os assuntos de interesse público” (Qur’an 3, 159). Devido ao fato de que na mesquita de Medina se reuniam todos os membros da comunidade –incluídas as mulheres- para discutir e buscar soluções de consenso aos problemas que se colocavam num círculo de escuta ativa, onde todos opinavam e todas as opiniões eram levadas em conta, torna-se evidente que o sistema de governo, chamado democracia participativa é afim aos princípios do Islã. Inclusive, conhecem-se, decisões tomadas de forma coletiva contrárias à opção defendida pelo próprio Profeta, paz e bênçãos para ele.
Devido ao fato de que o crente muçulmano tem a obrigação de escutar o outro e optar pelo caminho da sabedoria, do equilíbrio, e não pelo da opressão, do Islã provém a metodologia para fazer que os frutos de tal maturidade social se reflitam na sociedade. Sem o exercício da tolerância não se pode conseguir a paz numa sociedade plural, como têm sido todas as sociedades islâmicas desde o princípio. Por isso, é bom recordar, se Al-láh, O Mais Alto, não quisesse criar o mundo plural, nem a palavra plural existiria. Portanto, como conviver dentro da diversidade é um legado do Islã do qual a modernidade pode se servir e se iluminar.
A chamada ‘democracia’, no Islã, se encontra em suas origens no fato mesmo de que cada crente, em sua relação com a Soberania divina, tem a capacidade de receber a revelação e de aplicá-la em sua vida segundo sua percepção e entendimento. De cada muçulmano e muçulmana espera-se que faça uso de um exercício que poderíamos chamar, sem embaraços, democrático, para escolher entre a liberdade de interpretação e de consciência, ou a dependência daqueles que gostam de se chamar guardiães da tradição...
A pergunta essencial hoje é: Por que isso que se afasta de forma tão evidente da tradição sagrada do Islã –a compatibilidade intrínseca do sistema democrático com os princípios revelados do Islã- se tornaram uma interrogação? Por que algo tão óbvio é colocado em dúvida? E mais ainda: que fatores fazem com que muitos declarem o sistema democrático em evolução, totalmente incompatível com uma sociedade autenticamente islâmica?
As respostas apresentarão com clareza os graves problemas que as sociedades islâmicas devem enfrentar hoje se seu propósito é que o Islã autêntico, a sabedoria que emana de sua revelação e do exemplo de seu profeta, brilhem por si só. Quando isso ocorrer, para todos, em todos os continentes, tornar-se-á claro que é o sistema democrático ou qualquer outro sistema de organização social, que será beneficiado no seu contato com a luz clara do Islã e não ao contrário.