Jesus e o socialismo

Jesus e o socialismo

Jon SOBRINO


1. Não me parece correto fazer de Jesus, pura e simplesmente, um socialista, ainda que possa ser considerado com razão inspirador e simpatizante dos seus melhores sonhos, e, ainda que isto seja um mínimo, é importante. Não se pode dizer o mesmo a respeito do capitalismo, apesar dos esforços de Michael Novak, nem do imperialismo, em nenhuma das suas formas, norte-americana ou soviética. Em Jesus o centro é a idéia e o ideal do sócio-irmão, não a idéia do capital-dinheiro, nem a idéia do poder-submissão. Ambas as coisas são repelidas frontalmente. Diante de Jesus não se fazem conchavos.

O socialismo não é o mesmo que Jesus de Nazaré, mas, ao colocá-lo diante dele, não soaria tão mal como o capitalismo e o imperialismo. Até adquiriria um certo «ar familiar» – «operários», «camponeses» seriam acrescentados à missa nicaragüense, sem ver em Jesus um estranho, menos ainda um inimigo, diferente de como vêem as igrejas. No muito católico país vasco uma mulher adiantada nos anos, católica por toda a vida, dizia com convicção e entusiasmo: «Cristo foi socialista». E, se bem me recordo, Bonhoef-fer dizia que os operários, que pouco ou nada sabiam de dogmas, «compreendiam Jesus». Teólogo de família de procedência burguesa, deu testemunho de que há coisas pelas quais vale a pena se comprometer em profundidade. Ao mesmo tempo ligava o sermão da montanha e a justiça social.

Não se pode ignorar que Marx, como Jesus, provinha dos profetas de tradição judia. Neles Deus apostrofava reis e ricos com «vocês, os ricos que vendem o pobre por um par de sandálias». Enquanto aos fracos, pobres e forasteiros chamava «meu povo». A parábola sobre o «rico e Lázaro» e a afirmação «não se pode servir a Deus e ao dinheiro» podem passar despercebidas – e de fato são olimpicamente despercebidas - mais no capitalismo do que no socialismo. As bem-aventuranças, o compartilhamento solidário, a compaixão, o trabalho pela justiça até à entrega da própria vida podem encontrar maior parentesco no socialismo. Raramente ocorrem em nome do capitalismo.

Aqui em El Salvador, há uns 30 anos, muitos fizeram uma opção pelos oprimidos, também esquerdistas de diversas índoles, com grande generosidade. Em 1985, o padre Ellacuria, falando dos marxistas, disse com toda a clareza e em linguagem provocante: «Esta preocupação ética fundamental (do marxismo)... suscitou entre os cristãos uma certa sensação de esquecimento de algo essencial à fé e um certo complexo de inferioridade ao comparar o compromisso ético dos marxistas revolucionários com os mais pobres diante do compromisso, na maioria dos casos simplesmente verbal e cauteloso, sem riscos, das pessoas de Igreja.

2. O socialismo não tem por que reclamar, pois, ao se colocar diante de Jesus. Pelo menos não de forma sem alarde, como o faz o capitalismo. Mas, comparando com Jesus, há diferenças e, às vezes, contradições. Tentemos comentar em breve síntese.

Em primeiro lugar, é evidente a contradição com Jesus quando o socialismo termina em formas políticas de império, ditatoriais, cruéis. Obviamente. Mas também quando, alem das palavras, fica configurado como uma força política, em conivência essencial com o capitalismo, ainda que traga presente alguma porcentagem de democracia convencional. Socialmente, isso significa fomentar ativamente o individualismo pessoal e o egoísmo anti-solidário. O que procura e oferece, nas eleições, por exemplo, é o «bom viver» e o «êxito». A partir da perspectiva de Jesus, há aqui uma desumanização.

Em segundo lugar, a isto que é evidente, deve-se acrescentar a busca do poder. É inevitável, e pode ser boa por seus frutos, mas sempre é coisa delicada, pois não é por ser político que deixa de ser poder – reflexão que se estende a todo o poder, e, recordemos, já que falamos de Jesus, se estende também, com muita crueldade, ao poder sagrado, religioso, eclesial.

Jesus não foi indolente nem meramente contemplativo. Falou com autoridade, agiu com energia e enfrentou os poderes reais. Chegou-se a dizer que dele saía uma «força», mas não se diz que usava «poder». Não foi esta sua linha. Não procurou o poder nem o fomentou. Horrorizava-lhe a tendência do poder para a dominação e a sujeição. Repeliu que o povo o coroasse rei e que Pilatos o tivesse por rei. A figura de Jesus pode transmitir a «força» de um profeta ou a «segurança» que produz o servo sofredor de Javé, mas não o «poder» de um Moisés chefe.

E isto é sumamente central na sua visão do mundo e na sua atuação pessoal. O seu juízo sobre o poder é límpido e sem escapatória: «os príncipes das nações as tiranizam e os grandes as oprimem com o seu poder. Não seja assim entre vocês». Isto se aplica a todo poder: capitalista e socialista, econômico e militar, religioso e eclesiástico. A tentação de cair nele – ao que Jesus acrescentará a tentação de cair na sedução das riquezas e dos homens, e a insensibilidade diante das vítimas – ameaça todo o humano. Vicia as relações dos seres humanos entre si.

Isto não significa, obviamente, que os socialistas não podem procurar o poder político, ganhar eleições, promulgar leis – oxalá em benefício dos pobres e dos fracos. Mas Jesus insiste, com absoluta seriedade, no perigo que o poder termine em prepotência e corrupção – como se este fosse o seu lugar natura l , como diria sabiamente Aristóteles.

Por último, ainda que possa surpreender falar disto, é preciso analisar a experiência religiosa de Jesus, ou o seu equivalente, no socialismo. Isso pode estranhar, pois o socialismo não tem por que ser formalmente religioso ou cristão. Muitas vezes não o é, e historicamente tem sido anticlerical; freqüentemente com razão, às vezes sem ela. Mas o religioso sim, foi em Jesus uma força profunda, sem a qual não se entende sua visão e atuação positivas, não só pessoalmente mas com relação à sociedade.

Para Jesus a nova sociedade que deve ser construída não vem acompanhada de grandes sinais apocalípticos, dir-se-ia então; não se identifica com a força histórica de um grupo nem com a vitória sobre inimigos e a sua aniquilação. Em uma concepção pós-maquiavélica da política nada disto tem por que ser positivo para a pólis. Mas pode sim ser uma experiência religiosa, adequadamente socializada em uma compreensão da política como cuidado da pólis. Esta pode crescer em humanização ao aceitar a realidade que podemos chamar mistério, superação do mero positivismo, da infantilização, da coisificação, da trivialização do real. Este é o mistério que outorga alento à existência.

O socialismo não tem por que ser religioso – nem tem por que chamar o mistério de realidade Abba, como o fazia Jesus – mas não se pode dar por escusado que a dimensão religiosa da existência humana não configure à pessoa e à pólis. É uma opinião pessoal, mas os socialismos democráticos ocidentais, com tudo o que têm obtido para os cidadãos e os operários, mostram que se tem perdido algo importante. Quem sabe se o podem encontrar no pathos de socialistas e comunistas que foram humanizadores. Minha esperança é que não excluam a possibilidade de poder encontrá-lo também em tradições religiosas, como a de Jesus.

Não se trata de uma sutil recaída no clericalismo, mas de levar a sério a dimensão mais profunda da realidade dos seres humanos. Pode-se discutir se a profundidade pode acontecer com religião ou sem religião. Alguém pode falar com Ernst Bloch de «ateísmo no cristianismo» ou com Alfonso Comin de «ateísmo dentro do cristianismo». O que não deveria ser discutível é levar a sério a profundidade do humano, sem o qual degeneramos, ainda quando aumentam a -qualidade da vida e as liberdades constitucionais. Este é, na minha opinião, problema fundamental do socialismo de hoje nas sociedades ocidentais de abundância – e, por suposto, do capitalismo.

Isto vale também para as igrejas. Não basta se mover em âmbito formalmente religioso. É preciso praticar a religião que surge e conduz ao profundo. Sair de si mesmo, para não acabar aprisionado sempre no mesmo, como nos diria Paulo. E visitar órfãos e viúvas, ao que São Tiago chamava de verdadeira religião.

3. Em diversos países da América Latina há movimentos importantes que, de uma ou de outra forma, se relacionam com o socialismo. Não é pouco se freiam algo da crueldade do imperialismo capitalista. É um bem também que dêem passos positivos, ainda que sejam pequenos, rumo à idéia-ideal do socialismo. Nisto, como ocorreu em décadas passadas, o socialismo poderá coincidir com o cristianismo. Nesta tarefa haverá cristãos e socialistas.

Para nós a esperança é que Jesus se configure a todos eles. E a utopia é que a civilização da pobreza, ou, dito em palavras mais aceitáveis, «uma civilização da austeridade compartilhada e solidária», seja o Reino de Deus.

 

Jon SOBRINO

San Salvador, El Salvador