Liberdade de consciência
Liberdade de consciência
De que liberdade temos consciência? Ponto de vista da Psicologia da libertação
Raquel Guzzo
Difícil compreender a vida humana sem liberdade e o tornar-se humano sem o processo de libertação. A mais importante dimensão da vida humana é, de modo inquestionável, a liberdade.
No entanto, a vida livre e digna não acontece de modo predominante nos dias de hoje, porque a forma de produzir e reproduzir a riqueza para atender às necessidades humanas é fundada na exploração de uns poucos por muitos outros, mantém a desigualdade entre as pessoas, pobres e ricos, patrões e empregados, quem vive da riqueza e os que a produzem. Liberdade, neste contexto, é uma aspiração idealizada, que não se concretiza sem mudanças nas condições sociais, econômicas e políticas.
A consciência que temos sobre nossa liberdade e dignidade não nasce conosco. É preciso desenvolvê-la sempre conjugada à afirmação de direitos inalienáveis de pessoas e comunidade. Almejar a liberdade não é suficiente. É preciso lutar por ela, considerando sempre a liberdade individual depende da liberdade de todos. Seres humanos nascem, crescem e se desenvolvem para viverem de modo coletivo. Este processo exige muita atenção e cuidado de tal forma que seja possível a plenitude do pensar e criar, funções mentais superiores presentes apenas nos seres humanos. Para desenvolver-se como seres humanos, as pessoas precisam estar livres de opressão, exploração, violência, abuso, e outros tipos mais sutis de escravidão – hoje tão naturalizadas, como por exemplo, a alienação na vida decorrente da total impossibilidade das pessoas usufruírem do fruto de seu trabalho.
A liberdade não é dada a todos. Ela é conquistada pela luta daqueles que buscam a verdade escamoteada na divisão social do trabalho, na concentração de riqueza na mão de poucos, na violação dos direitos humanos; é preciso conhecer o que nos escraviza, o que nos impede de vivermos a vida em plenitude. A liberdade tem como condição, como raiz e como fonte, a verdade.
É ai que uma ação libertadora tem como fundamento a consciência e a verdade. Quando as pessoas vivem o cotidiano de suas vidas, sem conhecer como as relações sociais acontecem no contexto atual, elas são alvos potenciais para a manutenção do processo de exploração capitalista. Esta é a verdade que a Psicologia da Libertação se propõe a revelar em um processo de tomada de consciência coletiva dos explorados e oprimidos por este sistema. Seres humanos não precisam viver de esmolas e migalhas que caem dos pratos daqueles que detém o poder econômico. Todas as pessoas são capazes de se movimentar em busca de sua libertação. Este processo parte de uma análise concreta da realidade e suas contradições.
A realidade concreta de onde partem as propostas da Psicologia da Libertação, é da ordem do capital: uma produção concentrada de riqueza nas mãos de poucos e um número incontável de pessoas exploradas, sem moradia, sem emprego, com fome, sem possibilidade de estudo e vida digna. Trata-se de um mundo em desequilíbrio. E a Psicologia da Libertação busca identificar, conhecer e assumir a condição de explorado e escravizado, de modo individual e coletivo, e afirmar um horizonte, um futuro de liberdade.
Assim, é preciso caminhar em busca de condições objetivas onde a liberdade de todos possa ser realidade. Uma sociedade sem desigualdades e com justiça não pode se tornar um sonho sem concretude. É preciso enfrentar obstáculos e isso implica em avanços e recuos, o que torna a marcha demorada. Um sonho implica luta, porque sonhamos com a mudança do mundo para todos e não apenas para nós mesmos.
Sabemos que esta luta é, antes de mais nada uma luta política e, por isso, é preciso reconhecer ingredientes presentes e imbricados em seu meio. É preciso pensar, levantar dúvidas, apontar contradições, delinear caminhos, formas e contextos deliberados e imprevistos de caminhada. Nesta luta estão misturadas diferentes dimensões, como a história das pessoas, as diferentes compreensões da realidade, os interesses de grupos, de classes sociais, os preconceitos e as ideologias.
Se a realidade é contraditória significa que jamais as coisas estarão estaticamente como nos sonhos. A história revela as contradições da realidade. Se a realidade é processual, significa que nada acontece como em um passe de mágica. Tudo leva tempo, tem fases, estrutura.
Vivemos em uma sociedade capitalista, impregnada por idéias neoliberais de que é preciso conquistar sempre algo que jamais se alcança e, que definitivamente, tampouco precisamos. Olhamos ao redor e vemos por todos os lados a injustiça e a falta de uma ética social capaz de nos diferenciar entre humanos e sub-humanos. Diante deste cenário, considerando que não somos reféns e que podemos mudar a história e as condições da vida, temos distintos caminhos a tomar.
O primeiro deles, é aderir ao jogo – despedir-se da vida e entrar na escalada de sucesso a todo custo, desejar ter sempre mais, competir para ter, destruir quem pensar diferente, coisificar as relações, o que nos faz protagonistas do status quo, pois estamos mantendo as regras do jogo.
No segundo caminho, ao invés de aderirmos ao jogo, procuramos atacá-lo. Reconhecemos que seus valores e suas formas de dinamizar a vida, não são o que nos queremos, mas tememos ser cooptados por eles. Neste caminho sentimos-nos sozinhos, perdemos a energia e quando nos damos conta, entregamos a luta porque, reconhecidamente, não conseguimos vencer. A saída então é desistir, ou assumir o papel de “franco atiradores de pedras em vidraça”, como se não precisássemos ir além – uma posição que se nos apresenta como pseudo revolucionária, e que, na verdade, nos mostra como desesperados perdedores.
Há ainda, uma terceira opção de caminhada – quando testemunhamos uma nova forma de viver por assumirmos uma luta ideológica, política, pedagógica e ética, que não tem lugar nem hora, não importa o grau ou o contexto. Nesta opção, mais difícil porque exige construção em contraposição ao que está posto, é necessário uma revisitação de tudo o que nos foi apresentado como correto, para vislumbrar a mudança e tirar a conotação medrosa da destruição. Denunciamos e anunciamos, sempre com uma opção concreta de mudança. É o processo em curso da libertação pela busca da verdade e a tomada da consciência.
De verdade, nos dias de hoje, quando olhamos ao redor, percebemos que há muita coisa impregnada na vida das pessoas que não as permite viver de modo solidário. Em tantos anos de capitalismo, o que ganhamos foi a perda total da dignidade humana.
Nesta terceira opção de vida que podemos assumir, é preciso muita coragem, pois é marcada pela diferença minoritária. Este testemunho do respeito à dignidade das pessoas, ao direito a ser mais do que a ter, requer um exercício que se expressa na certeza de que mudar é difícil, porém é possível. E isso é o que nos faz recusar qualquer posição fatalista, que atribui a um fator condicionante o poder determinante, diante do qual nada se pode fazer. Por maior que seja a força condicionante sobre nossas realizações, sobre nossas vidas, sobre nossos comportamentos, considerados individualmente ou socialmente, não podemos aceitá-la passivamente. Se pensarmos que este poder é irrecorrível, então estaremos deixando de viver, de pensar enfim, de sonhar. Assim fosse, esgotar-se-ia a eticidade de nossa presença no mundo, o que pra mim, é a mesma coisa que dizer - perdemos o sentido da vida!
Por isso, um caminho possível para que a vida possa ser digna a todos é alimentar a capacidade da pessoa pensar, projetar, comparar, discutir, escolher, decidir, refletir, avaliar – livre para se humanizar. Antes disso, não há mudança possível. Quando a pessoa se reconhece condicionada e não fatalisticamente submetida a este ou aquele destino, abre-se o caminho à sua intervenção no mundo.
As pessoas não se dão conta da opressão e submissão em que vivem, porque passam a incorporar em suas vidas as necessidades criadas pelo sistema. Um humanismo comprometido com a emancipação dos homens propõe-se a torná-los conscientes de lutar para serem livres de exploração e dominação, de lutar por direitos iguais e garantias sociais.
A conquista da democracia precisa de homens e mulheres conscientes, livres. Ao final, quando se apresentam medidas para a organização social, culmi-nam com a educação gratuita a todas as crianças integrada com a vida, onde o livre desenvolvimento de cada um é pressuposto do desenvolvimento livre de todos.
Com estas idéias, não há caminho mais revolucionário, do que levar as pessoas a refletirem sobre suas vidas e que possam testemunhar pela forma de viver outros valores. Romper com uma sociedade neoliberal é tornar conscientes um número cada vez maior de pessoas sobre a opressão que vivem sem se darem conta. Propor um novo modo de viver na simplicidade e na coletividade.
RAQUEL GUZZO
PUC-Campinas, Campinas, SP, Brasil