Liberdade e mundo indígena

Liberdade e mundo indígena

Margot Bremer


Chama a atenção que os povos indígenas de Abya Yala, antes de entrarem em contato com nosso mundo ocidental, não sentiam nenhuma necessidade de concentrar poder nem riqueza, nem de organizar sociedades homogêneas. Eles formaram pequenas comunidades em articulação com outras, para poder viver e conviver em liberdade e independência. Apesar de uma grande diferença em relação a dons e conhecimentos entre seus membros, distinguiam-se por um profundo sentido de pertença à sua comunidade. Qual é o seu segrego?

Os povos originários: em busca da sua liberdade

O pior da conquista, há mais de 500 anos dos povos originários, não foi o despojo de seus bens nem de suas terras, mas o despojo de sua liberdade. Eles concebem a liberdade desde sua cosmovisão, totalmente distinta aos que somos da cultura ocidental. Não concebem sua liberdade a partir da convicção de ser centro e donos da terra, senão sentindo-se parte dela: junto com o cosmos e com a vida, nele, estão formando o todo. Segundo um mito guarani, o Criador, a raiz de sua grande solidão, criou a palavra, fundamento da linguagem humana; criou-a como uma pequena porção de seu imenso amor, de sua imensurável sabedoria e de seu canto sagrado. Depois refletiu a quem poderia fazer partícipe desta parte sua e criou os seres humanos. Deste modo, cada guarani se identifica como “pequena porção” da palavra divina, que é sua “alma”. A partir dessa visão, logicamente, o guarani se concebe também como fragmento de sua comunidade, à qual aporta sua “pequena porção” que é única na construção do conjunto. A livre doação desse aporte seu às assembleias e à construção cotidiana da convivência, leva-lhe à plenitude de sua identidade e, muitas vezes, de sua liberdade.

Liberdade para os indígenas não significa independência, senão interdependência, desde uma visão global-comunitária. E assim como se percebem como parte de sua comunidade, sentem-se também como parte da natureza e do cosmos. Essa interpretação de seu ser os faz sentirem-se familiares das plantas, dos animais, da terra e dos astros. Longe de se sentirem donos dos mesmos, saboreiam a liberdade de poder aportar sua parte única na composição de uma grande sinfonia de vida, na qual cada um tem seu canto, seu tom, sua palavra para ser escutada e escutar.

Liberdade a partir da consciência da própria imitação

A visão de ser parte de um conjunto permite-lhes saborear a liberdade que lhes possibilita entrar em um relacionamento de reciprocidade: dar e receber. Em vez de subestimarem-se por suas próprias limitações, eles gozam da possibilidade de ser complementados por outros e complementar a outros. Podem desfrutar dessa interdependência porque seu horizonte não é nem antropocêntrico nem egocêntrico, senão holístico.

Desse horizonte aberto, nasce sua interpretação de todas as demais áreas da convivência humano-cósmica, que se concretiza no sistema de reciprocidade entre as partes, tanto em nível religioso como econômico, mas também em nível de organização, de trabalho comum (as mingas, os mutirões), da tomada de decisões comuns por consenso nas assembleias. O princípio é sempre não submeter ninguém, senão respeitar a parte única que cada um possa contribuir à vida comunitária. Quando a comunidade vive em liberdade, então é possível que cada um/a seja respeitado/a em sua própria liberdade.

A utopia de cada comunidade é alcançar a plenitude de vida. Ser diferente não é motivo de exclusão, pelo contrário; pois a consciência de ser uma parte, um fragmento particular, fomenta o sentido da abertura e inclusão: o “outro” é bem-vindo para a complementação mútua. Um exemplo disso é o casal humano: tanto o homem como a mulher, de acordo com seu gênero, sentem-se destinados a complementarem-se em sua diversidade. Formam um casal em liberdade criativa e dinâmica para complementar e ser complementados. Desse modo, mulher e homem chegam à maior plenitude humana, em liberdade de amor. Um indígena só é tido como incompleto, e assim se sente.

Educar para a Liberdade

A liberdade não se aprende com a doutrina, mas com a experiência, acompanhada de reflexão por pessoas livres. As crianças indígenas vivem em sua comunidade um clima de liberdade que lhes ajuda a encontrar na vida comunitária o princípio fundamental de seu modo de viver. Não somente os pais, mas todos os membros da comunidade são responsáveis pela educação das crianças, considerados filhos da comunidade.

Um mito guarani, chamado “Os Gêmeos”, apresenta dois irmãos órfãos em busca da “Terra sem Males”. Aprendem a superar as dificuldades da vida que se lhes apresentam no caminho e, desse modo, desenvolvem sua inteligência e seus conhecimentos. A partir da permanente luta comum pela vida, aprendem a valorizá-la em sua forma comunitária. Nesse caminhar juntos, estão criando uma cultura de liberdade, a cultura guarani, a partir da qual até hoje as crianças guaranis constituem sua identidade.

Culminam seu aprendizado da vida com a transmissão dos saberes dos antepassados por um educador, para crescerem por meio dessa sabedoria e recriarem-na para tempos mudados. Trata-se de uma educação para a criatividade, possível somente quando se respeita a liberdade. O educador prepara as crianças para chegarem a ser plenamente “partes” da comunidade. Desde sua “iniciação”, são jovens livres para participar da comunidade, e jovens maduros para confrontarem-se independentemente com a vida. Seu destino é buscar em comunidade a Terra sem Males, mediante uma vida em reciprocidade entre iguais. Essa reciprocidade praticada em plena liberdade renova e dinamiza os laços solidários da comunidade e lhe aporta sempre mais vida.

Vemos que o princípio fundamental da liberdade no mundo indígena consiste no que os guaranis chamam de o jopói, que significa “abrir as mãos mutuamente” em um dar e receber alternados, com plena consciência de que cada um é uma parte.

Essa forma de construir e manter a liberdade ainda está presente e ativa no mundo indígena de Abya Yala, raiz da população de nosso Continente latino-americano. Ela nos é oferecida como uma herança milenar em nossa busca de uma Terra sem Males, que reclama urgentemente um êxodo do sistema capitalista, individualista, consumista e antropocêntrico que nos oprime e escraviza.

Parece que chegou o momento em que os povos originários dessas terras nos convidam – em meio a fortes ventos neoliberais do Norte – a entrar em um diálogo com eles em que podemos complementar em reciprocidade para construir juntos mais liberdade.

 

Margot Bremer

Asunção, Paraguai