Luta e resistência das mulheres do campo e da cidade no brasil de hoje

Luta e resistência das mulheres do campo e da cidade no brasil de hoje
 

RosângelaPiovisani e Michela Calaça


A partir da análise da forma de conseguir/produzir a alimentação, percebemos como se desenvolveu a humanidade, desde a antiguidade. A alimentação é necessidade básica de qualquer ser vivo e as formas como nós passamos a organizar a produção de alimentos é parte importante da história e, a partir dela, analisamos como as relações entre os sexos evoluíram, pois tudo indica que a divisão sexual do trabalho surgiu a partir das formas de obtenção da alimentação.

Sabemos que a história da humanidade é marcada por forte divisão sexual do trabalho, mas não significava a institucionalização de hierarquias, pois, como os estudos antropológicos e arqueológicos chegam à conclusão de que a maior parte da alimentação das comunidades primitivas vinha das coletas de vegetais (raízes, folhas, frutos etc), tarefas atribuídas às mulheres. Partindo da lógica há quem defenda que existiu um matriarcado; no entanto, acreditamos que existiam relações não hierárquicas, pois os alimentos de base animal são essenciais à sobrevivência humana. A caça e a pesca eram atividades majoritariamente realizadas por homens. As comidas de origem animal eram responsáveis pela complementação da alimentação, pois sendo uma atividade que não ocorre previsivelmente, era uma comida que chamamos de esporádica. A dieta básica era de origem vegetal, e por isso, para Godelier, a divisão sexual do trabalho se instaura apenas com a caça de animais de médio e grande porte, introduzindo a complementaridade econômica dos sexos, a sua cooperação permanente, ou seja, para ele, anteriormente todas as atividades eram feitas por ambos os sexos. Nas palavras de Godelier: “Cooperar significa ajudar-se reciprocamente, compartilhar o esforço e seus resultados para reproduzir-se globalmente como sociedade” (Godelier, 1977, p. 371, 372) .

O contato com as plantas possibilitou às mulheres perceberem que as sementes, como os animais, se reproduziam. Pelas mãos das mulheres, ao longo da história, a agricultura e as primeiras técnicas agrícolas se desenvolveram, e esse desenvolvimento ampliou a produção além das necessidades imediatas, mas a derrota histórica das mulheres ocorre com o surgimento da possibilidade de acumular riquezas, a partir da propriedade privada (ENGELS, 2002) , pois se instaura a vontade dos homens de controle sobre a prole e, consequentemente, sobre as mulheres.

O que demonstra que a desigualdade entre homens e mulheres foi, e continua sendo, uma construção social que se perpetua a partir da manutenção da divisão sexual do trabalho ao longo da história, de formas diferentes, mas sempre separando e hierarquizando, dividindo o trabalho em trabalho reprodutivo e produtivo, afirmando que o trabalho produtivo é realizado por homens, desconsiderando o valor produtivo feito pelas mulheres, e o considera mais importante do que o trabalho reprodutivo, das mulheres, que muitas vezes não é reconhecido como trabalho, mas atividade natural.

Hoje, o modelo de funcionamento da sociedade capitalista não acontece mecanicamente, mas garantido pelo Estado que utiliza instituições como escolas, igrejas, famílias, exército, meios de comunicação, para construir e legitimar uma ideologia capitalista, patriarcal e racista. A organização do trabalho social é elemento fundamental para entender as relações humanas no capitalismo, em especial o papel atribuído às mulheres na família, no trabalho, na política, nas igrejas, ou seja, nos espaços de decisão.

Existem registros de mulheres – sobretudo indígenas e negras – que lutam no Brasil desde a época do Império, contra a exploração dos povos originários, contra a escravidão, ou mesmo as mulheres brancas que igualmente participam de lutas contra a escravidão, que se organizam contra as diversas ditaduras vividas, as que vivenciaram as guerrilhas, as que se organizam em partidos, como também as mulheres que lutaram e continuam lutando contra a carestia e por direitos: educação, saúde, divórcio, direitos reprodutivos etc. Nós, mulheres que hoje construímos o feminismo camponês e popular, reivindicamos esse direito histórico, ou seja, nos referenciamos na luta dessas lutadoras.

A organização das camponesas se torna forte e visível para a sociedade especialmente a partir dos anos 80, quando começa o processo de abertura política e vislumbrar a construção de uma nova Constituição do Brasil. Nós, camponesas, organizamo-nos para a luta pelo direito à seguridade social que inclua o reconhecimento do nosso trabalho, o reconhecimento de que somos trabalhadoras, de que nossa atividade no campo não é apenas uma ajuda. Foi essa luta organizada que gerou a Articulação Nacional de Trabalhadoras Rurais, formada por várias articulações de mulheres rurais. Algumas articulações se uniram, tornando-se o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC.

Apesar de ter conquistado alguns avanços na área da saúde, educação, trabalho formal, o reconhecimento legal dos direitos iguais entre os sexos, na prática, entre a legislação e a realidade existe uma distância enorme, construída pelo patriarcado, que se expressa no machismo das pessoas e das instituições. Ainda até hoje temos que continuamente provar que somos camponesas, que nosso trabalho é importante. Não desistiremos! Vamos sempre lutar para que o nosso trabalho no campo seja cada vez mais valorizado, inclusive os trabalhos de cuidados com as crianças, pessoas idosas e enfermas, cuja responsabilidade, majoritariamente, só a nós é atribuída.

Ainda precisamos fazer muitas lutas: pelo fim da exploração das mulheres, pela construção de outro modelo de agricultura e sociedade. É preciso reconhecer, como importante, a nossa produção, que valoriza a natureza e a vida humana, nosso trabalho com as sementes, da horta (ou quintais), criação de pequenos animais, produção de queijos, doces e chás; trabalhos que estavam sob a responsabilidade da agroecologia, mesmo quando não conhecíamos esse nome.

Outro importante reconhecimento se refere aos processos de participação política, nos movimentos sociais e populares, ocupando os espaços públicos de decisão, libertando-nos do espaço privado, do ambiente doméstico, para a construção da cidadania. Ainda hoje há dependência financeira de mulheres em relação a homens – marido, filho ou pai –, criando amarras de exploração, dominação e violência domésticas. Os instrumentos legais de proteção estão distantes da realidade de nossas comunidades, florestas e assentamentos.

Estamos avançando nos movimentos, articulações e entidades que lutam pela libertação e justiça social. É com muito debate, formação e ações concretas que avançamos no reconhecimento do trabalho produtivo e reprodutivo das mulheres, no acesso a documentos, nos estudos, no fato de termos o nome incluído no documento de posse da terra. Com isso conseguimos incluir na pauta do governo e da sociedade a problemática da questão ambiental, dos monocultivos, dos bens da natureza, da divisão sexual do trabalho, do cuidado etc.

As mulheres serão – se é que já não o sejam – as que estarão à frente dos novos processos de lutas por emancipação, pois estamos vivendo constantes golpes contra a nossa democracia, as mulheres as primeiras a irem às ruas – o Fora Cunha foi uma luta, prioritariamente das mulheres; fomos as primeiras a colocar em pauta o mal que ele fazia para o país, lutamos também no Fora Temer, formamos articulações como a das mulheres pela democracia e, mais recente, na luta das mulheres pelas diretas e pelos direitos, nas lutas estudantis as mulheres estiveram à frente.

Grandes são os desafios. Mas vemos em cada mulher trabalhadora do campo e da cidade um desejo de participar, decidir os rumos não só de sua vida, mas o destino do nosso país, desafiando a homofobia, o patriarcado e o capitalismo, por outro país e outro mundo, um mundo justo e humano.

NADA É IMPOSSÍVEL

Desconfiai do mais trivial, na aparência singela.

E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois, em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. (Bertold Brechtt)

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1. GODELIER M. “Caccia/raccolta”, in Enciclopedia Einaudi, II 354-378. Torino, Einaudi, 1977.

2. ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Centauro. São Paulo, 2002.

 

RosângelaPiovisani e Michela Calaça
Movimento de Mulheres Camponesas – MMC, Brasil