Lutas populares pela democracia
Lutas populares pela democracia
Giuseppe DE MARZO
Era o dia 10 de abril de 2000 e, pela primeira vez na Bolívia e no mundo, um movimento popular conseguia derrotar um consórcio de multinacionais ocidentais que havia privatizado a água na cidade de Cochabamba, triplicando a tarifa, excluindo 50% da população ao acesso aos serviços hídricos, convertendo-se em proprietários de um bem comum durante mais de 40 anos – assim oprevia o contrato – e proibindo inclusive o recolhimento de água da chuva. Em quatro meses de mobilizações na chamada «guerra da água», e depois da morte de cinco pessoas e centenas de feridos, por causa das repressões militares, o povo de Cochabamba conseguiu expulsar o consórcio de multinacionais «Água do Tunari» e recuperou a empresa municipal privatizada.
Nos últimos anos, as multinacionais que constituíram o consórcio, fiscalmente registrado na Holanda, não se renderam e apresentaram uma denúncia pedindo uma indenização pela «falta de lucro» de 50 milhões de dólares no tribunal interno do Banco Mundial (BM), o CIADI, destinado a resolver as controvérsias pela dissolução de contratos onde se encontram implicados tanto o BM como os acordos bilaterais entre países. Entre Holanda e Bolívia há um acordo internacional que tende perigosamente para o lado da empresa, assim como o BM tinha um vínculo com um empréstimo ao Governo boliviano e a vontade de privatizar o setor hídrico. Nos últimos anos, as preocupações das multinacionais se centraram na necessidade de se protegerem juridicamente diante da possível rebelião ou repúdio, por parte de todo um povo ou de comunidades locais, à gestão dos contratos.
O ocorrido em Cochabamba é a demonstração de que alguns contratos não deveriam nem sequer ser propostos, mas que continuam existindo, impunemente, testemunhando a absoluta ausência de regras éticas no mundo do grande negócio, às custas dos direitos humanos, ambientais, sociais e econômicos.
A indenização «por falta de lucro» aparece como uma norma medieval que quer dissuadir e desalentar qualquer tipo de intenção de transformação dos mecanismos de exploração constituídos nos anos da neo-colonização pós-industrial. Não vale somente ganhar e tirar fora uma multinacional do próprio território, e inclusive morrer por causa da repressão exercida pelos que defendem os interesses do capital transnacional; falta enfrentar um processo representado por um tribunal que, mesmo que não tenha nenhum reconhecimento popular, poderia ameaçar com sanções de dezenas ou centenas de milhões de dólares, capazes de reverter tudo o que se obteve após anos de luta e mobilização. Uma espécie de dissuasão moral dos milionários, exercitada sobre os políticos que querem apoiar o descontentamento que vem das massas de trabalhadores e trabalhadoras, agricultores ou indígenas empenhados em pôr em discussão o mecanismo da privatização para defender seu próprio território e seus próprios direitos.
As campanhas que temos levado a cabo chamaram a atenção de alguns dos mecanismos das finanças internacionais, com curiosos paradoxos. Acontece que quando se paga o recibo da luz e do gás em Milão, Itália, a AEM (empresa energética de Milão), na realidade se está apoiando a empresa que fez uma denúncia por «falta de lucro» contra o povo de Cochabamba, Bolívia.
Parece incrível, mas é assim. O consórcio «Água do Tunari» é controlado em 55% pela empresa chamada IWL (International Water Limited), 25% pela espanhola ABENGOA e 20% por particulares (entre eles um ex-candidato à presidência da Bolívia: Medina). A IWL pertence 50% à empresa norte-americana Bechtel (unida à Cheney) e o restante 50% à empresa italiana EDISON.
E aqui é quando se chega ao melhor: desde outubro, a EDISON é da TDL, enquanto que a TDL pertence 50% à francesa WGRM e os outros 50% à italiana AEM, ou seja, à «empresa energética de Milão».
Também na Itália, desde que as empresas municipais foram privatizadas, em vez de pensar em oferecer um serviço público que afete a esfera dos direitos coletivos, estas empresas só pensam em fazer operações de compra e venda de pacotes de ações de outras empresas, adquirindo o controle de outras que desencadeiam desastres pelo mundo, como o ocorrido na Bolívia.
Esta experiência nos demonstra a importância que é evitar a privatização dos serviços públicos e como é urgente a capitalização das empresas desestatizadas.
Um problema de «capacidade» ideológica da esquerda social-democrata, que se fez estupidamente protagonista nos anos da privatização e liberalização, foi a tentativa de demonstrar que era uma força política capaz de governar dentro de um mecanismo do capitalismo. Foi um erro histórico pensar que se poderia «governar» o capitalismo, sendo este, por definição, uma função do crescimento ilimitado que não se pode moderar ou processar, pelo contrário, reage sempre para obter o máximo, devorando tudo que pode, inclusive os direitos de populações inteiras, mais ainda: das próximas gerações!
Todavia, a AEM é, 43,26% da municipalidade de Milão, mas o problema é a porcentagem que pertence ao mercado e a sua «mão invisível», cada vez mais visível em grande parte do sul do mundo. Depois de meses de mobilização e de campanhas dirigidas na América Latina, na Espanha e na Itália, a Bechtel, a EDISONAEM e a ABENGOA se renderam e decidiram retirar a denúncia de indenização de 50 milhões de dólares.
Chama a atenção o muito que conta a imagen em termos econômicos no que diz respeito aos direitos de milhões de pessoas, mas assim é na era do neoliberalismo. Temendo repercussões neste sentido, o consórcio de privatizadores decidiu vender ao governo boliviano suas próprias ações pela módica cifra de dois pesos bolivianos, cerca de 30 centavos de euro. A proposta chegou dos escritórios das multinacionais, que querem uma «solução amistosa». Um pré-acordo foi firmado em 22 de dezembro de 2005 com a promulgação do Decreto Supremo 28539, assinado pelo ex-presidente Rodriguez. A norma diz, textualmente, que cada empresa receberá um peso boliviano por todas as suas ações e se dará por terminado o julgamento da indenização.
Uma vitória que pertence a todo o movimento e que nos ajuda a abrir um debate amplo sobre a importância da recapitalização de nossas empresas municipais e sobre o tema da arbitragem internacional do CIADI, que teve no passado e pode ter no futuro um efeito negativo nos esforços de populações inteiras e nas ações de governos que no sul do mundo tentam sair da armadilha da exploração.
Um primeiro terreno de confronto-discussão será com aquela grande parte da esquerda institucional que foi vítima da fascinação da privatização e que, finalmente, pôde freqüentar o banquete das grandes finanças, apresentando-se sem nenhum projeto, mas com grande apetite. Neste sentido, os movimentos deverão ter uma grande força para abrir um debate cultural encaminhado para demonstrar o desastre econômico produzido pela privatização das empresas municipais, e a exposição com riscos de chantagem do mercado a que estão submetidos milhões de cidadãos desconhecedores desses atos.
Não se trata de reafirmar a «centralidade do Estado» na economia, mas de separar o controle das grandes finanças de um enorme mercado e restituir o controle dos direitos e das responsabilidades aos cidadãos e às comunidades, como deveria ocorrer com a gestão participativa dos bens comuns. Uma ação que se traduz na construção de relações internacionais baseadas na reciprocidade e na co-divisão de valores entre comunidades distintas, mas unidas na defesa dos bens comuns e na prática da democracia participativa na construção de um modelo mais respeitoso que o atual.
Sobretudo, a percepção de estar unidos uns aos outros na necessidade de lutar cada um por seu próprio território e lutar em nível mundial, para romper o trançado e os efeitos das decisões tomadas em Milão, que não só afetam aos cidadãos italianos, como também na Bolívia, na Palestina ou em qualquer outro lugar onde chega o tecido ramificado do capitalismo financeiro.
Neste sentido, parece fundamental participar nas lutas locais e mundiais, seja desde um ponto de vista teórico ou prático. Já não existe um lugar onde o modelo neoliberal não possa chegar, mas isto significa também que muitos lugares estarão pouco guardados.
A decisão de fazer presidente do BM o teórico da guerra preventiva e sucessor de Kissinger nos tempos do Plano Condor, Paul Wolfowitz, e de nomear como diretor da OMC, Pascal Lamy – aquele que como comissário europeu do comércio internacional em 2003, em Cancun, promoveu acordos de liberalização e privatização com todos os países do sul do mundo, para favorecer as multinacionais, sem passar por nenhuma legitimação (supondo que poderia dá-la) do Parlamento Europeu, nem de parlamentos nacionais – nos dá uma idéia de quais são suas intenções e o futuro que nos estão preparando.
A mobilização dos movimentos sociais tem a tarefa de provocar os curtos-circuitos necessários para abrir as redes da estrutura que enjaula nosso mundo imaginário. Há questões que já não estamos dispostos a delegar a outros, porque fazem a diferença entre um mundo do tipo imperial e um mundo no qual a democracia representa, finalmente, o interesse de todos.
As lutas para defender o bem comum, converter em públicas as empresas municipais que gerenciam serviços básicos, introduzir formas de autogestão e de participação horizontal entre comunidade e público, e construir uma rede internacional entre movimentos cada vez mais fortes e mais capazes de atuar juntos, como demonstra a experiência da luta boliviana pela água, são um terreno de compromisso imediato em que a ação dos movimentos sociais pode experimentar formas de exercício direto da política.
Giuseppe DE MARZO
Associação A SUD, Bolívia-Itália