Luto ecológico: chorar nossos mortos e fortalecer a comunidade!

 

Moema Miranda

POR UM APOCALIPSE COM REDENÇÃO

“Por la muerte, por el miedo de la muerte empieza el conocimiento del Todo.”
Franz Rosenzweig, La Estrella de La Redención

Nos últimos dois anos, cada um de nós, certamente, experimentou a angustiante sensação de não ter mais lágrimas para chorar seus mortos. As pessoas arrebatadas pelo Covid - muitas vezes enterradas sem despedida, sem rito, sem velório - caminharam para a eternidade, lado a lado de inúmeros líderes e defensores de direitos socioambientais assassinados; com mulheres vítimas de feminicídio; com jovens negros, eliminados em nossas cidades. Entre as mortes pelas quais choramos, há uma quantidade
imensa de árvores cortadas na Amazônia, em um desmatamento recorde. Quase 3 bilhões de animais incinerados na Austrália, e um número não registrado nas queimadas, que se alastraram em vários biomas da América Latina. Corais sem vida, peixes envenenados com plástico, geleiras e glaciais derretidos. Talvez, nunca como antes, a profunda interligação da vida – de toda a vida - tenha sido tão evidente, tão próxima, como durante a pandemia do Covid-19. E, com comoção, percebemos que, aqui na Terra, também a morte faz parte desta imensa teia de conexão cósmica. “Tudo está interligado” (Encíclia Laudato Sí): vida e morte. Por isto, choramos até não ter mais lágrimas. Gritamos. Denunciamos. Lutamos. E, no entanto, os mais fortes e os mais ricos não tiveram “olhos para ver” nem “ouvidos para ouvir”.
A força devastadora e a fome insaciável dos gigantes – dos conglomerados multinacionais e dos bilionários – tais como a dos gigantes que viveram por aqui antes do Dilúvio, segundo o Gênesis (Gn , 1-8), seguiu seu percurso, espalhando o terrível hálito da morte, do aquecimento, da extinção. Conta o relato bíblico que, quando os gigantes e os homens se associaram na destruição, “Javé se arrependeu de ter feito o homem sobre a terra e
seu coração fi cou magoado.” (Gn 6, 6) A grande tristeza de Deus O levou a uma decisão terrível: “vou exterminar da face da terra os homens que criei, e junto também os animais, os répteis e as aves do céu, porque me arrependo de tê-los feito.’ (Gn 6, 7) Na tradição judaico-cristã, a interligação entre todos nós, criaturas do Deus
da Vida, é intrínseca e necessária, tanto na vida quanto na morte. Uma relação visceral, uterina. Não podemos ser humanos sem o cosmos, sem a Terra e os habitantes com quem compartilhamos o mesmo destino cósmico. Sabemos que, para a ciência – e estes são dados de toda e qualquer ciência do Sistema Terra – o mundo pode ser sem nós, os humanos. Assim foi durante bilhões de anos. Mas para a nossa tradição religiosa, nós também somos intrínsecos ao projeto amoroso de Deus Criador. O mundo, como sonhado por Deus, já deveria ser conosco. Não para nós! E aqui, o POR UM APOCALIPSE COM REDENÇÃO “Por la muerte, por el miedo de la muerte empieza el conocimiento del Todo.” Franz Rosenzweig, La Estrella de La Redención terrível engano da lógica da privatização e da acumulação ilimitada, revelado na fome insaciável e destruidora dos gigantes – os de antes e os de depois do Dilúvio.
A pandemia do Covid-19, por seus efeitos tão próximos a cada um e, ao mesmo tempo, tão globais, tornou mais evidentes os laços de mútua dependência. No entanto, o excesso de óbitos e a forma como têm sido maltratados por muitos dirigentes do mundo, aumenta um risco terrível: o da banalização de mortes evitáveis, de mortes
violentas. Risco de criarmos, como humanos, uma insensibilidade frente ao absurdo. Alguns psicólogos alertam que, diante de situações tão extremas e inéditas, cria-se uma insensibilidade auto-protetiva. Uma espécie de “negação da realidade”, um ver sem enxergar. Um não olhar a fundo. Sabemos, como nos ensinam os cientistas
do Sistema Terra, que nas questões ambientais existem os “pontos de não retorno” (os “tipping point”, em inglês). Um ponto a partir do qual a atuação humana já não consegue evitar a degradação. É assim com a Floresta, que a partir de um determinado ponto de desmatamento já não consegue se regenerar. Assim também com os corais
ou com as abelhas. Os psicólogos dizem que em termos emocionais, começamos a correr o risco de um “ponto de não retorno” de nossa insensibilidade frente a tantos falecimentos, humanos e não humanos.
Diante deste imenso risco, que nos tornaria inertes às catástrofes que nos assolam, é preciso ativar todos os nossos mecanismos de alerta! Reencontrar os caminhos de encontro e sensibilidade. O grande pensador judeu Martin Buber escreveu, já em 1923, que “toda vida verdadeira é encontro”, na relação profunda “Eu e Tu”. Relação a partir da qual constituímos um “eu” que nos seja próprio. Como lembra um de seus comentadores: “não é somente outro ser humano que se torna um Tu para mim – mas também um animal, uma árvore, uma pedra
e, através de todos esses, Deus, o Tu Eterno.” Buber, Martin. Do Diálogo e do Dialógico. São Paulo: Perspectiva, 2009).
Acredito que o caminho do encontro, que é a marca de toda “vida verdadeira”, supõe neste momento a dignificação da morte. De todas as mortes. Dignificar a morte de irmãos e irmãos, a morte das árvores, dos rios, dos glaciais. A morte de cada um deles precisa ser prateada, para que sua vida seja dignificada. Seja sentida e vivida como “vida verdadeira”. Mas pratear significa, neste momento apocalíptico, ir ao sentido mais profundo da palavra “apocalipse”. Como bem sabemos, ela não significa “fim” ou “fim do mundo”. Significa “revelação”. Deixar ver sem véus. Tornar acessível à sensibilidade e ao entendimento. Olhar profundamente o projeto de ecocídio que vivemos pela sanha acumuladora insaciável do capital. Projeto de intenção de morte, ou necropolítica, como chama um filósofo contemporâneo.
Regidos pela lógica do mercado, de acumulação ilimitada, pereceremos. Todas. Todos. Os filósofos da ecologia entendem agora o que os povos indígenas jamais esqueceram: “a criatura que vence seu ambiente destrói a si mesma” (Bateston, G. Steps to an Ecology os Mind, Northvale, London: Jason Aronson Inc., 1987). A ideia de que o
“indivíduo” pode acumular ilimitadamente bens que retira de seu ambiente, do chão onde pisa, do ar que respira, é absolutamente suicidária e extermicista. A consciência da incompatibilidade entre a lógica de acumulação ilimitada, guiada pelos princípios do mercado, e um planeta onde a vida é encontro, exige de nós luto e luta. É
preciso ter tempo para acolher nossa dor. É preciso valorar as mortes e, em comunidade, cumprir o luto: en-lutar. A partir daí, como ensina nossa tradição latino-americana, buscar as raízes das mortes injustas, injustificáveis e que não podem ser consoladas. Unidos pelo luto, nos encontramos em comunidade, na luta por justiça e paz.
Estes tempos exigem um novo compromisso apocalíptico. Novas alianças comunitárias, que nos permitam ver e revelar o Mal. Nominar, como fez o Papa Francisco, a “economia que mata”. E, nesta dinâmica, passar do luto à luta. Um luto ecológico. Uma luta ecológica por um Reino de Justiça e Paz. Que nosso luto tenha a força da Vida! Maranata!