Mais além da modernidade ocidental A Filosofia Andina e a Nova Sociedade

 

Josef Estermann

Na área acadêmica, tanto no Norte como no Sul global, teimosamente persiste a ideia colonial e ocidentocêntrica de que o "indígena" pertence a uma época e civilização "pré-moderna", uma postura que pode ser, de acordo com a orientação correspondente, expressão de superioridade ou de uma antropologia romântica, que vê no indígena o "nobre selvagem". Por outro lado, também existem vozes que esperam do mundo indígena e de seu forte enraizamento no telúrico e cósmico, a "salvação" do mundo, a grande alternativa ao modelo devastador capitalista-tecnocrata. Entre estas duas perspectivas exteriores do "indígena" -como paradigma retrógrado ou como perspectiva utópica - se move a auto-compreensão dos povos indígenas: nem tradicional, nem moderna, nem pré-moderna ou pós-moderna, mais além das projeções que o mundo não-indígena tem e acima de tudo, além de uma modernidade da qual o Ocidente pensa ter o monopólio.

A Filosofia Andina como tentativa de sistematizar o pensamento ou a  "cosmoexperiência" e "cosmo-espiritualidade" indígena dos Andes - o conceito de "cosmovisão" é eurocêntrico demais - pretende ir além da modernidade em chave  ocidental. Não é uma filosofia (ou "pachasofía") pré-colonial, nem colonial ou pós-colonial, mas uma filosofia viva e enérgica, que é introduzida com todos os direitos ao concerto dos saberes em nível global. Em termos da Filosofia da Libertação latinoamericana, poder-se-ia dizer que se trata de uma filosofia "transmoderna", embora me pareça que tenhamos de deixar para trás esse debate acadêmico europeu sobre o pré-moderno, o moderno e o pós-moderno. Opto sim, por uma abordagem intertranscultural, isto é, um polígrafo de conhecimentos ao longo de um processo de transformação cultural e civilizacional.

 A humanidade está diante de desafios maiores pela iminência de uma mudança  paradigmática em um sentido muito mais radical do que Thomas Kuhn tinha falado há quase 60 anos. O paradigma dominante de um capitalismo desenfreado, de uma antropologia individualista e egoísta, da objetificação e mercantilização da vida em todos os seus aspectos, de uma globalização desproporcional do consumo, está diante do colapso total. O clima muda a uma velocidade exagerada, um novo crash nos mercados de ações é iminente, as disparidades de riqueza aumentam a cada dia, e novas e antigas formas de racismo, sexismo e xenofobia tornam-se aceitáveis, além do discurso político sexista. É urgente, então, "pensar de maneira diferente". Felizmente, há muitas propostas que já estão nesse caminho, tanto no Norte quanto no Sul global. Uma dessas propostas é a Filosofia Andina.

 A estimativa fundamental da Filosofia Andina diz que tudo está relacionado com tudo, que o cosmos ou pacha é um organismo vivo, no qual o equilíbrio contribui para uma vida e felicidade maiores, e o desequilíbrio à maior morte e sofrimento. A Filosofia Andina visa superar os dualismos promovidos pela modernidade ocidental entre o material e o imaterial, o sagrado e o profano, o privado e o público, o individual e o coletivo, inclusive entre o feminino e o masculino. Os princípios de complementaridade, correspondência, paridade e ciclicidade contra-atacam qualquer tentativa de introduzir exclusão, supremacia, hegemonia e crescimento ilimitado.

Pacha é o cosmos ordenado, a paridade energética e dinamizadora, a rede de redes de articulações vitais entre diferentes ambientes e épocas, é o espaço-tempo einsteiniano e, além disso, o organismo cósmico vivo. Em vez da substância que no Ocidente forma a pedra angular ou o átomo fundador, nos Andes predomina a relação: no começo há a relação, o indivíduo é um dos seus derivados. Portanto, é o princípio da relacionalidade - tudo está relacionado com tudo - que governa como um axioma orientador e fundacional de qualquer projeto de vida que mereça esse nome.

O projeto social, político e espiritual correspondente pode ser resumido no conceito do Bem Viver (Suma Qamaña, Allin/Sumaq Kawsay) ou Viver Bem, que acarreta uma série de consequências em nível econômico, político e epistêmico. A economia deve servir a vida num sentido holístico, incluindo os seres vivos não humanos e inorgânicos; a política deve promover o equilíbrio e a inclusão, e o conhecimento deve ser guiado pelo ideal de uma vida além da concorrência, afã de lucro e dominação. A sociedade do Viver Bem faz uso de novas tecnologias na medida em que contribuem para sua realização e plenitude. Não se trata de "viver melhor", porque em um cosmos equilibrado, cada crescimento desproporcional contribui para maiores desigualdades e, portanto, para uma "vida ruim" da maioria.

 O Bem Viver inclui um modelo equilibrado de sociedade como o uso sustentável e prudente dos bens comuns, chamados "recursos" por uma mentalidade extrativista e rentista. O ser humano só faz usufruto desses bens, mas não os produz, nem os possui; somente a Pachamama é produtiva em um sentido estrito, o ser humano é transformador e cultivador. De acordo com este princípio, os chamados "recursos" pertencem a toda a humanidade e não podem ser privatizados, isto é, "roubados" do pacha como se fossem uma simples coisa. Eles são seres vivos, sustento da relacionalidade viva e vivificante e, portanto, propriedade de todos e de todas, ou melhor, de nada. O princípio ocidental moderno de "propriedade", levado até o extremo de que 1% de pessoas possui 99% do planeta, é irracional e atenta contra a vida.

A Filosofia Andina não é considerada a única alternativa ao modelo dominante da tecnociência ocidental e de uma economia neoliberal, mas busca alianças com outros paradigmas emergentes no âmbito de uma Nova Sociedade: economia solidária, movimento commons, ubuntu, decrescimento, pós-desenvolvimento, agricultura urbana, produtos orgânicos etc. Muitos dos princípios inquestionáveis do paradigma capitalista-extrativista estão atacando a vida em seu sentido pleno. Para a Pachasofía Andina, um crescimento ilimitado é um absurdo que leva a uma doença irremediável como o câncer. A natureza é parte de nós e,  nós como parte da natureza, que não é nem recurso nem ambiente, mas o organismo do qual fazemos parte.

Em relação à mudança climática, o paradigma andino não apenas se opõe ao ditado e à ideologia do crescimento ilimitado, mas considera ambos como sintomas de uma doença estrutural que tem suas raízes nos princípios da modernidade ocidental: o dualismo metafísico e antropológico; individualismo; egoísmo natural; ética da competitividade; mecanização do orgânico. A Filosofia Andina propõe uma abordagem ginofílica, isto é: mais próxima do sentimento feminino que do masculino. A modernidade ocidental é a expressão de uma epistemologia exageradamente masculina: conquiro ergo sum (“conquisto, então existo”) e a gradual e completa desnaturalização do natural e do orgânico. O ser humano na concepção andina não é "produtor" nem "competidor", mas um cuidador e facilitador, funções geralmente associadas ao feminino.

 A abordagem da Filosofia Andina para uma Nova Sociedade consiste em pensar e agir na forma de redes, ou melhor, de uma rede cósmica de relações que, por sua vez, repercute nos princípios sociais da convivência humana. O correspondente "imperativo categórico" poderia ser: "Aja de tal maneira que você contribua para a conservação e perpetuação da ordem cósmica das relações vitais, evitando distúrbios da mesma". Se aplicado às esferas econômica, política e social, ficam inviáveis os projetos "modernos" de um consumo que usa sete planetas, uma tecnologia que nos atomiza e tele-direciona (através do Google e do Facebook), uma economia em que 42 homens (nenhuma mulher) têm o equivalente a metade da riqueza mais pobre da população humana da Terra.

 A Filosofia Andina propõe uma sociedade além da modernidade - que inclui a chamada "pós-modernidade" - e está sintonizada com o conhecimento e as tecnologias de ponta, que falam da complexidade criativa de Gaia (planeta Terra) como um organismo sensível ou dos "bens comuns" (commons) que não são propriedade de ninguém, nem do Estado. Não é uma nostalgia pelo ancestral ou uma utopia romântica, mas um paradigma de ver o mundo de uma maneira diferente. Ver o mundo de outra maneira significa hoje conceber um outro mundo em que todos e todas caibam, também a "natureza". Ou em termos andinos: um mundo segundo os princípios fundamentais da pachasofía que são relações vitais de complementaridade, correspondência e reciprocidade.