Maria de Nazaré ou a virgem?

Maria de nazaré ou a virgem?

Maria López Vigil


Não há mulher mais famosa no mundo que a mãe de Jesus. Ao escutar esse nome (Maria, Miriam, Maryam, Mary, Marija, Marie, Miren…), respondem milhões de meninas e mulheres em todo o mundo.

Bendita entre as mulheres e xará de tantas mulheres, sabemos da menina camponesa e judia, criada em Nazaré, que não sabia ler, porém, contar as cabras que pastoreava nas colinas de sua aldeia... Provavelmente, muito jovem dada em matrimônio por seu pai. Não sabemos quantos anos tinha quando deu à luz, Jesus. Sim, sabemos que o amamentou, lavou-o e o vestiu, cuidou dele…

Nos Evangelhos encontramos apenas breves dados que nos permitem imaginar sua relação com seu filho, já profeta. Custou a entender o que Jesus anunciava quando falava do Reino de Deus. Até louco o acreditou (Lc 8,19-21). Sem nos dizer como chegou a compreendê-lo, depois o acompanhava pelos caminhos com outras mulheres e esteve presente quando o torturaram na cruz. A última vez que a “vemos” estava reunida em Jerusalém com os seguidores de Jesus, cinquenta dias depois da jornada amarga, quando ela, com outras mulheres e com eles, decidiram anunciar que Jesus continuava vivo. Começava, assim, o movimento de Jesus.

Nos Evangelhos, há outros relatos simbólicos sobre ela: o anjo que lhe anuncia sua gravidez, a visita à sua prima e o canto que entoou nesse dia, sua angústia pelo filho perdido aos doze anos…

Apesar de tudo, o que mais “sabemos” dela são crenças que transformaram Maria de Nazaré na “Virgem”. Até o seu nome desaparece, muitas vezes, quando a nomeiam, centrando toda a sua identidade nisso: na virgindade.

A Igreja Católica proclama quatro “dogmas de fé” sobre ela, em um culto em ascensão ao longo dos séculos. Segundo os dogmas, é mãe de Deus (século IV), é virgem perpétua (antes, durante e depois do parto, século VI), não tem pecado original (século XIX) e subiu ao céu em corpo e alma (século XX). A Igreja Católica proclama também as outras quatro “verdades fundamentais”: é corredentora, é rainha, é mãe espiritual dos crentes e é medianeira de todas as graças. Como se não bastasse, dá por certo algumas de suas “aparições” em covas, arbustos, mares e nuvens…

De todas as roupagens com as quais os concílios, teólogos e pontífices revestiram Maria, o dogma que se enraizou mais no imaginário popular é o da virgindade, que muita gente costuma confundir com o da conceição imaculada, entendendo-o como Jesus foi concebido “imaculadamente”, isto é, sem a “sujeira” de uma relação sexual.

Há dogmas de fé, impostos como crenças, que devem ser aceitos sem discussão e sob pena de excomunhão e inferno, que podem ter consequências daninhas, especialmente em quem na sociedade não foi ensinado a pensar com sua própria cabeça e a duvidar. Não poderia ser um exemplo a teologia da redenção? Porque aqueles que foram ensinados a crer que fomos salvos por dor e sangue, com frequência acabam pensando que nos salvamos sofrendo, suportando pacientemente as “cruzes” que Deus nos manda, sejam as injustiças de um patrão explorador, o desgoverno de um ditador, o maltrato de um marido abusivo ou qualquer outro agravo…

Poderá também ter consequências negativas o dogma da virgindade de Maria? A partir do texto simbólico do anjo que lhe anuncia sua gravidez, interpretado como um fato real, e a partir do texto mítico do Gênesis sobre o pecado de Eva, interpretado como um fato histórico e fundamento de toda a dogmática, foi sendo construído, século a século, até os nossos dias, um dos imaginários religiosos mais contraditórios sobre “a Mulher”.

Não escutamos vez ou outra, que a mulher ideal foi a submissa, a que por ser virgem foi eleita mãe de Deus?

E que a mulher proscrita é a rebelde, a que pecando abriu as portas do mal no mundo, a mãe de todos os humanos? De um modo ou de outro, dito ou não dito, entre Maria e Eva fomos colocadas todas as mulheres.

A Maria simbólica, a “escrava do Senhor”, é apresentada às mulheres como modelo a imitar, ainda que sempre inalcançável, porque nenhuma mulher chega a ser mãe sendo virgem. A Eva mítica é apresentada como alerta vermelho, advertindo-nos de que as mulheres somos frágeis, fracas, inclinadas a tentar e susceptíveis de sermos tentadas.

Não acabará daninho o dogma da virgindade de Maria, ao apresentar a virgindade como o valor que nas mulheres mais agrada a Deus? Será saudável apresentar a virgindade como um valor superior ao saudável e alegre desfrute da sexualidade? Será positivo apresentar a passividade e a submissão com que Maria aceita a estranheza de sua gravidez, como virtudes que devem adornar todas as mulheres?

A todos, mulheres e também homens, o dogma da virgindade de Maria, incrustado nas consciências, pode sugerir uma ideia daninha: o desprezo da sexualidade, especialmente da feminina. Santo Agostinho, que 17 séculos depois de seus escritos, tanto continua influindo na teologia, amarrou as três ideias: o pecado do sexo, o nascimento virginal de Jesus e a superioridade e a virgindade sobre a vida sexual.

O edifício dogmático está construído de tal forma que qualquer pedra que seja colocada necessita ser apoiada em outra. O dogma da virgindade de Maria tem muito a ver com os dogmas com que foi revestido Jesus de Nazaré, até convertê-lo em Cristo. Sua origem extraordinária, o filho de um Deus, concebido humano no seio de uma virgem, levou a fazer dogma que no parto Maria havia conservado a sua virgindade e que depois do nascimento de Jesus jamais teria tido relações sexuais. Alguns teólogos obcecados pela virgindade, pregaram que a mãe de Maria havia sido virgem. E outros consideraram nascimentos virginais em cadeia, desde a quarta geração anterior a Jesus. Toda a especulação, para “assegurar” a divindade de Jesus, baseando-a na ideia de que o corpo e a sexualidade não são nem divinos, nem sagrados.

Não há nenhuma religião que ignore o significado do corpo. Todas tendem a sujeitar a normas, as duas principais funções de nossos corpos: a alimentação e a sexualidade. Por ser um impulso tão vital, a moral sexual ocupou lugar central em todas as religiões. Nas religiões ancestrais da humanidade abundaram os ritos que bendiziam a fertilidade e o princípio sexual feminino como símbolos divinos e sagrados. Porém, com o avanço das religiões patriarcais, das que derivam todas as religiões atuais, a sexualidade feminina foi censurada com uma severidade nunca aplicada à dos homens.

Não são estas ideias prejudiciais alheias à mensagem de Jesus? Jesus confiou nas mulheres e as integrou a seu grupo e nunca falou de nada parecido com “moral sexual”. Tudo isto lançou raízes na teologia posterior, acentuando uma visão negativa da sexualidade. A relação sexual deixou de ser um prazer sagrado, maravilhosa via de comunicação humana, uma metáfora do amor de Deus, para converter-se em algo sujo, negativo, degradante.

Uma das origens do dano está no dogma da virgindade de Maria. Não poderemos revisá-lo? Para começar a mudar de mentalidade, chamemo-la por seu nome, Maria de Nazaré, Maryam, muito melhor que “a Virgem”.

Ela foi a mãe de Jesus. Não saberemos nunca quem gerou Jesus. Ela o pariu com as dores com as quais todas as mulheres dão à luz. E teve outros filhos. Os Evangelhos mencionam seus irmãos e falam de “suas irmãs”. Mateus nos dá os nomes dos quatro irmãos de Jesus.

Deus te salve, Maryam, és cheia de graça, nasceste como todas nós, ficaste grávida como nós engravidamos, pariste como todas nós e morreste como morreremos todas. Bendita és tu entre as mulheres, não apenas por ter sido sua mãe, mas porque estás aí, no começo do movimento de Jesus, forjadora, inspiradora e pioneira, junto a outras mulheres, daquela primeira comunidade que começou a construir o Reino de Deus

 

Maria López Vigil
Manágua, Nicarágua