Migrantes: Duplamente excluídos

Migrantes: Duplamente excluídos na velha economia

Leonir Chiarello


A extensão do planeta, a intensidade, a velocidade e os impactos dos intercâmbios nos âmbitos do comércio, das finanças, da produção, da cultura, da tecnologia e das comunicações, confluem na conformação progressiva de um sistema mundial incerto e paradoxal, que inclui determinados setores sociais, empresariais e institucionais privilegiados e, ao mesmo tempo, exclui cada vez mais a maioria das pessoas, grupos sociais, empresas, instituições e, inclusive países que não conseguem se incluir no processo. Neste contexto, o novo horizonte da sociedade global não se define tanto pela presença de vínculos econômicos, financeiros, políticos, sociais e culturais internacionais, que sempre existiram, mas por sua expansão, intensidade e, especialmente pelos seus impactos absolutamente inéditos e contraditórios, que dependem principalmente da lógica seletiva e excludente do sistema econômico neoliberal que determina o atual processo de globalização. O único exemplo dos mercados financeiros liberalizados, através dos quais os especuladores financeiros podem deslocar do tempo real de uma parte para outra do planeta grandes quantidades de capital, podendo provocar o fechamento de sistemas produtivos e deixando milhões de pessoas sem trabalho nem fontes de ganhos, permitindo-nos reconhecer a complexidade dos elementos vinculados ao processo de globalização excludente, que se desenvolvem em vários níveis e evolucionam rapidamente segundo trajetórias dificilmente previsíveis.

A consolidação deste sistema tem como base as clássicas doutrinas econômicas liberais e neoliberais que sustentam a capacidade natural de autorregulação do mercado através das leis da oferta e da demanda, além do princípio das vantagens comparativas dos países no comércio internacional. Sem dúvida, as consequentes crises econômicas e os efeitos nefastos do atual sistema econômico neoliberal em âmbito social, político e cultural revelam que o funcionamento da economia de mercado neoliberal em todo o planeta não é automático e espontâneo, mas requer determinadas regulamentações. A atual crise mundial, provocada por um sistema financeiro e bancário desregulado, é um exemplo concreto desta exigência de regulamentação, para que as ganâncias não continuem sendo privatizadas e as perdas socializadas.

Além da dissociação entre crescimento econômico e equidade social, o atual sistema econômico mundial segue gerando outras sequelas sociais, como a diminuição do poder aquisitivo dos salários, a flexibilização trabalhista, diferentes formas de precariedade de ingresso em lugares que repercutem sobre o incremento da pobreza. Ainda que no aspecto geral, a globalização tem levado à diminuição das cifras de pobreza em alguns países, as estatísticas dos organismos internacionais revelam que a cada dia cerca de 50 mil pessoas morrem por causa da fome, da carência de água potável ou de assistência médica elementar em casos de enfermidades curáveis, como a malária, o sarampo ou as condições periféricas, a falta de proteção habitacional ou de roupas e outras causas relacionadas com a pobreza, somando um total de cerca de 18 milhões de seres humanos ao ano. Este número equivale, a cada três anos, ao número de vítimas da Segunda Guerra Mundial em sua totalidade, incluindo os campos de concentração e os “gulags”, calculados em 50 e 60 milhões de pessoas.

Por outro lado, as irregularidades do mercado postas em prática pelos Estados, em vista de uma maior competividade internacional e crescimento econômico, que permitem se inserir no atual processo de globalização, impedem os mesmos Estados de controlar o comércio ilícito e permitem a geração (e a paternidade) de uma economia ilegal que coexiste e compete de modo irregular e anárquico com as corporações e empresas que atuam licitamente no mercado. Os Estados, com poucas exceções, têm cada vez menos poder de controle e coerção sobre a globalização do crime organizado e os subterfúgios ilícitos com os quais o crime organizado e os especuladores financeiros atuam. Tudo isto revela que a violência direta, provocada pelo crime organizado, e a violência indireta, provocada pelo atual sistema econômico neoliberal excludente, estão intimamente relacionadas, e são as causas principais do incremento de uma sociedade incivil em âmbito planetário e de incremento dos fluxos migratórios.

Consequência de tudo isto é que milhões de pessoas que anualmente são excluídas do direito ao desenvolvimento e dos direitos mais elementares – direito à alimentação, ao trabalho, à habitação, à saúde e à educação na América Latina – encontram na migração a única opção para sair desta situação e se veem obrigadas a migrar para poder subsistir ou para procurar melhores condições de vida para suas famílias. Portanto, de receber a imigração de ultramar, nas últimas décadas, a América Latina se converteu em uma das regiões com os índices mais altos de migração em todo o mundo. Na atualidade os emigrantes representam 4% da população da América Latina. Na década de 1960, por exemplo, o número de migrantes intrarregionais na América Latina chegava a pouco mais de um milhão e meio de pessoas, enquanto na década de 1990 tinha superado os onze milhões (Barry Mirkin).

As migrações, comparadas com o incremento dos fluxos de bens e capitais provocados pelo processo de globalização, são a linha marginal ou a última fronteira do processo de globalização, especialmente devido às políticas restritivas implementadas pelos países desenvolvidos e receptores de migrantes, entre os quais se destacam os Estados Unidos e a Europa. Nesse sentido a situação contemporânea resulta paradoxal, visto que, no mundo mais globalizado e interconectado que nunca, onde os fluxos financeiros e de comércio se liberalizam, a mobilidade das pessoas, pelo contrário, enfrenta fortes barreiras que a restringem. A migração internacional atualmente está excluída do processo de globalização neoliberal. Tal exclusão constitui uma das características distintas do atual sistema econômico mundial. Esta visão restrita da globalização, isto é, focalizada no fator econômico, sem o fator mobilidade humana, introduz uma questão ética que, além da tensão entre o direito legítimo do Estado de controlar as migrações e o direito inerente das pessoas à liberdade de movimento, colocam também como manifesta a tensão ética e estrutural que subjaz o direito das pessoas a migrar e o direito do Estado a regular o ingresso, a permanência e a saída de migrantes. Tal dimensão ética revela, de modo geral, a relação entre as migrações internacionais e a justiça global, e, em particular, a exigência de uma mudança do atual sistema econômico mundial no qual se contempla a ampliação da mudança da justiça distributiva além das fronteiras nacionais para que também os migrantes tenham acesso e sejam protegidos pela justiça. Neste sentido a definição de políticas migratórias justas e includentes requer uma racionalidade ética fundamentada no reconhecimento e respeito da dignidade e os direitos humanos que superam a perspectiva de uma cidadania vinculada à nacionalidade e considere o governo global e ético das migrações.

É esta perspectiva includente do reconhecimento da dignidade humana e dos direitos humanos que supera as fronteiras geográficas nacionais e luta por uma cidadania universal de todos os membros da família humana que poderá motivar a corresponsabilidade dos Estados, os organismos internacionais e os atores da sociedade civil no que diz respeito ao reconhecimento, à proteção e à promoção dos direitos humanos inalienáveis dos migrantes e suas famílias. Por outro lado, ainda que as políticas públicas sobre migrações sejam justas e includentes, estas seguirão sendo somente emplastros na ferida, se não muda o atual sistema econômico excludente, que é a causa principal da exclusão dos migrantes do direito ao desenvolvimento e à convivência social em igualdade de condições com os nacionais.

O que foi anteriormente exposto revela a necessidade de uma consideração una, global da justiça, entendida como justiça global, e da corresponsabilidade dos Estados e da sociedade civil para tratar as migrações eticamente. Por outra parte, a solução da paradoxal disfuncionalidade do atual processo de globalização excludente, que não está funcionando para com os pobres, os migrantes e o meio ambiente, é a definição de uma estratégia de gestão ética da mesma e da sua domesticação ao serviço de uma melhor qualidade de vida para toda a humanidade. Isto requer uma mudança sistemática da economia atual, para outra economia, que esteja a serviço das pessoas e não as pessoas a serviço da economia.

 

Leonir Chiarello

Diretor do Scalabrini International Migration Network

Nova York, Estados Unidos