Moderna escravidão no Império
Moderna escravidão no Império
Pedro STÉDILE
Um amigo me contou que em sua cidade a maioria dos trabalhadores da construção civil, que constroem prédios luxuosos, modernos, supersofisticados, estão em condições irregulares no país. Por isso, em geral, as em-presas que os contratam pagam durante algumas sema-nas, e depois, no final, negam os últimos pagamentos e os ameaçam entregar à Polícia.
Outro amigo me conta, que em sua região agrícola, o trabalho de colher tomates ou morangos é disputado humilhantemente entre trabalhadores marroquinos e camponesas romenas que se oferecem a preços escor-chantes para não passar fome.
Uma amiga, me conta que trabalhou anos, numa entidade de apoio a mulheres migrantes brasileiras, que viviam como escravas sexuais, de pretensos “patrões” que as haviam contratado no Brasil para trabalhos dignos. Seriam ao todo mais de 15 mil naquele país.
Essas três histórias são verdadeiras, e se passam todos os dias, na Bélgica, na Espanha e na Alemanha. Quem lesse desatento poderia imaginar que estaria con-tando fatos de povos “atrasados” de algum longínquo país da África ou de ilhas do Pacifico.
Nada disso, é a “moderna” prática de exploração do trabalho, no chamado berço da civilização cristã, como queria que constasse na constituição da União Euro-péia, o governo polonês.
Porém, além da forma humilhante como se propa-gam essas práticas de exploração do trabalho migrante, presentes também nos chamados países desenvolvidos, elas revelam a nova face de exploração da atual etapa do capitalismo no mundo: o império do capital financeiro.
Essência do neo-liberalismo: liberdade de exploração
Nas últimas duas décadas, consolidou-se a hegemonia de dominação do capital financeiro, sobretudo após a queda do muro de Berlim, o fracasso das economias do leste e a crise das organizações dos trabalhadores, seja sindical ou partidária, em todo mundo.
Propagou-se, então, a ideologia do neoliberalismo, como a ideologia do império. Do capital. O Neoliberalis-mo, significa “nova liberdade, total, para o capital finan-ceiro”. A “nova” liberdade garante que o capital possa impor sua vontade absoluta, transformando-se numa verdadeira ditadura de métodos de exploração do traba-lho, sem nenhum pudor, ou regras de controle. É a explo-ração total.
Nessa etapa do domínio do capital financeiro mun-dial, a exploração se transforma em coletiva. Não há necessidade mais, de um único patrão superexplorar seus empregados, enfrentar greves, ser acusado de explorador. Agora, o capital financeiro explora povos inteiros, de maneira invisível, e sob o manto da lei, da ordem, dos ditames de acordos internacionais. Como faz isso? De muitas maneiras.
Primeiro nos impõe o dólar como moeda única. E o dólar é fabricado sem nenhum parâmetro, e controle pelo império. Assim, as elites dos EUA podem consumir à vontade, e todos os anos, eles têm um déficit nas contas do governo de 500 bilhões de dólares, e outros 500 bilhões de dólares de déficit, ao comprarem mais mercadores no exterior do que vendem. Como financiam esse consumo de um trilhão por ano, a mais do que produzem? Com a maquininha do dólar. E todos os povos que se submentem a usá-lo, estão também pagando esse consumo.
Segundo, através do pagamento de juros. Mas eles não confiam mais que uma empresa capitalista do Terceiro Mundo possa tomar capital emprestado num banco do Primeiro Mundo, e pagar juros. Ela pode falir, ela pode atrasar. É mesmo, ninguém garante que seu negócio dará um lucro suficiente para reparti-lo com o banco. Agora, é muito mais seguro, cobrar juros de todo povo. Como? Muito simples, basta emprestar aos gover-nos, impor contratos leoninos, com cláusula cambial, que, se houver mudanças da taxa de câmbio, o governo também paga. E o FMI, sendo o novo capitão-do-mato dessa escravidão moderna e coletiva, garante a ferro e fogo que todos os governos respeitem os contratos. Não podem inclusive contratar mais servidores públicos, gerar mais trabalho, fazer investimentos, antes de honrar seus compromissos com os bancos do exterior. Assim, quase todos os governos do Terceiro Mundo se transformam também em capatazes dos interesses do “patrão interna-cional” que vêm do norte, e submentem seus povos à humilhação de trabalharem todos para pagar os juros. As pessoas trabalham, consomem, pagam impostos, diretos e indiretos. Todos pagamos. Os governos recolhem os impostos, transformam em superávits primários, trocam por dólares e entregam aos bancos internacionais. Os países do Terceiro Mundo se transformaram nas últimas décadas em exportadores de capital para os países desenvolvidos. Esse mecanismo perverso já vinha sendo explicado na América Latina, pelos nossos estudiosos que desenvolveram a teoria da dependência. Teoria que explicava como o subdesenvolvimento dos países do sul, era condição necessária para a acumulação de capital dos países do norte.
Terceiro: As leis de patentes para as empresas multi-nacionais e suas taxas de “royalties”. Sempre o conheci-mento era patrimônio de toda a humanidade. De geração em geração, vamos agregando conhecimentos, desenvol-ven-do novas técnicas de produção, novos produtos, novos bens. No entanto, o capital financeiro criou um mecanis-mo perverso. Criou as leis de patentes que per-mitem a que as multinacionais possam cobrar taxas de «royalties», ou seja, do poder do conhecimento pela utiliza-ção de produtos. E como garantem isso? De novo, criam supercapitães do mato, como a organização mundial do comércio, que tem como papel, entregar esse «direito» a algumas empresas, e vigiar para que os governos e povos respeitem, o que eles decidiram entre alguns gatos pin-gados, entre quatro paredes. Assim, agora, quem usar soja transgênica em qualquer parte do mundo, deve pagar uma taxa para a estadunidense Monsanto. E quan-to deveríamos pagar ao povo chinês que foi o primeiro a domesticar a soja? Quem quiser usar o uru-cum, dos povos indígenas brasileiros, terá que pagar uma taxa para uma empresa fantasma da França! E assim, tantas outras situações.
Para que tenhamos uma idéia da magnitude dessa nova forma de exploração, o Brasil paga por ano, um bilhão de dólares, em taxa de «royalties» para a Microsoft. Por programas que já são de conhecimento público, ou poderiam ser substituídos com vantagens pelos pro-gramas livres Linux. Mas amedrontados por ameaças do império, governo e empresas pagam religiosamente.
A Monsanto, sem vender um grão sequer de semente de soja aos agricultores gaúchos, recolheu num ano 80 milhões de dólares em taxas de «royalties». E muitas entidades sindicais pelegas ajudaram a recolher a taxa.
Quarto, o domínio da agricultura e dos alimentos por grandes corporações multinacionais, impõe condi-ções de comércio e preço que afetam milhões de famí-lias camponesas em todo mundo. Hoje, 500 empresas multinacionais controlam quase a metade de toda a produção mundial, mas dão trabalho para apenas 1,6%. E na agricultura, dez grandes corporações multinacionais controlam 60% do comércio agrícola mundial, 30% de todas as sementes, 75% de todo o comércio de agrotóxi-cos. Esse controle concentra riqueza e renda e leva à miséria milhões de camponeses, que veêm o mercado local destruído e controlado por essas empre-sas.
Essas mesmas empresas atuam para ir padronizando as formas de alimentos no mundo. Ate o século XVI, a humanidade se alimentava com mais de 3 mil espécies de vegetais. Em 400 anos de capitalismo co-mercial se reduziram para 300 espécies. Durante o século XX do capitalismo industrial, reduziu-se a 60 variedades de vegetais, e nas últimas duas décadas o imperialismo reduziu a 34 produtos vegetais, sendo que hoje, 80% dos alimentos da humanidade se baseiam em cinco tipo de grãos: soja, milho, trigo, arroz e feijão! Essa padroniza-ção dos alimentos e controle do comércio por multina-cionais, escraviza os camponeses e coloca em risco sua sobrevivência e, sobretudo, coloca em risco a soberania alimentar de cada povo. Ou seja, os povos do sul já não conseguem mais produzir seus próprios alimentos e com isso passam a depender das empresas multinacionais. E já nos advertia o grande José Martí: «povo que não consegue produzir seus alimentos é um povo escravo!».
As multinacionais da agricultura estão impondo uma escravidão moderna aos povos do sul. As garras da Monsanto, da Cargil, ADM, Sygenta, Bunge... se esten-dem da Coreia ao México, do Canadá a Madagascar.
Estamos, então, diante de uma moderna escravidão, que explora a todos neste império mundial. Porque podemos chamá-la de trabalho escravo. Porque todos nós que vivemos no Terceiro Mundo, sob a égide do império e do dólar, obrigamo-nos a pagar involutariamente, compulsoriamente e invisivelmente essas taxas de exploração que são carreadas para o império!
Desemprego: a maior escravidão da cidadania!
O mais perverso é que o capital financeiro constrói um sistema que despreza a necessidade de explorar diretamente o trabalho produtivo. Nunca na história da humanidade tínhamos sofrido tamanha taxa de desem-prego. Não se trata mais de um exército industrial de reserva, temporário. Agora, é permanente e cada vez mais ampliado. Milhões de seres humanos, sobretudo jovens, não têm e jamais terão oportunidade de trabalhar! Isso é o fim de nossa civilização. Um sistema que não garante aos seus cidadãos o direito de trabalhar. A negação do trabalho é a escravidão da cidadania! O capital financei-ro nos transformou em cidadãos escravos de um sistema que lhes nega o direito de ser explorados!
João Pedro STÉDILE
MST e Via Campesina, Brasil