Nas pegadas do bispo Pedro Casaldáliga

 

Antônio Canuto

Um homem do povo.

Podemos dizer, sem medo de errar, que Pedro Casaldáliga foi um dos bispos que melhor viveu e implantou as reformas que o Concílio Vaticano II propôs e os compromissos assumidos no Pacto das Catacumbas (Roma, Catacumbas de Santa Domitila, 16 de novembro de 1965), assinado por algumas centenas de bispos. Compromissos esses traduzidos para a realidade latino-americana pela II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, realizada em Medellín, Colômbia, em 1968.

O bispo Pedro rechaçou sempre qualquer símbolo ou distintivo que o diferenciasse do povo. Na sua ordenação episcopal, a mitra foi substituída por um chapéu de palha sertanejo. Um remo, feito pelos indígenas Tapirapé, substituiu o báculo. O anel de tucum, feito pelos índios da região, marcaria o compromisso com sua causa. (O anel que cursilhistas amigos de Madri lhe enviaram, foi mandado, como recordação e sinal de carinho, à sua velha mãe, na Espanha). O cartão-lembrança desse ato, na verdade, era um manifesto de como seria sua conduta, distribuído aos presentes: “Tua mitra será um chapéu de palha sertanejo, o sol e o luar; a chuva e o sereno; o olhar dos pobres com quem caminhas e o olhar glorioso de Cristo, o Senhor. Teu báculo será a verdade do Evangelho e a confiança do teu povo em ti. O teu anel será a fidelidade à Nova Aliança do Deus Libertador e a fidelidade ao povo desta terra. Não terás outro escudo que a força da Esperança e a liberdade dos filhos de Deus, nem usarás outras luvas que o serviço do Amor.”

Pedro manteve esta coerência a toda prova. Ele não sossegou até não morar na casa simples em que ele viveu até o fim de seus dias.

Os trajes normais de Pedro eram calça e camisa e um chinelo de dedo (havaianas) era o calçado. Estes chinelos passaram a ser conhecidos como “prelazia”, pois era o calçado de praticamente todos os agentes de pastoral.

Pedro não usava batina. Quando se viu obrigado a ir ao Vaticano para a Visita ad Limina, em 1988, teve que tomar emprestada a batina de um seminarista para ir às audiências com os cardeais e com o Papa. Quando a Unicamp lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa, quebrou seu cerimonial em respeito ao estilo de Pedro. Recebeu o título em mangas de camisa, foi dispensado das vestimentas usadas nestes rituais.

Pedro viajava sempre da maneira mais próxima do povo: em ônibus, na carroceria de uma caminhonete ou de um caminhão carregado de sacos de arroz ou com toras de madeira, na garupa de uma moto e até de bicicleta.

Ao ir às comunidades, fazia questão de visitar o maior número de famílias que fosse possível. Sem sombra de dúvida, Pedro, na região da Prelazia, era quem mais conhecia pessoas e delas se lembrava, quando as encontrava em algum lugar. Lembrava detalhes da família, do trabalho.

A casa dele estava sempre com as portas abertas para acolher a quem por lá passasse. Pedro viveu totalmente integrado à vida do povo

Seguindo as pegadas do bispo Pedro Casaldáliga, as mais profundas que deixou, por onde passou, foram a fidelidade, a indignação e a rebeldia.

 A Fidelidade

Pedro foi radicalmente fiel ao Deus de todos os nomes, de todos os povos e nações, acima de igrejas e religiões.

Foi profundamente fiel ao Filho desse Deus, que rompeu todas as barreiras entre o divino e o humano, e se fez um igual a qualquer um de nós, Jesus de Nazaré. E entre os humanos, rompeu as barreiras da nação, da Lei e do Templo e, por isso, como qualquer rebelde e malfeitor, foi morto, pregado numa Cruz.

Foi fiel às comunidades dos seguidores de Jesus, que o mantiveram vivo em seu Evangelho, seus gestos, palavras e atitudes.

Fidelidade que manteve ao longo da vida e que foi provada na longa enfermidade, que foi lhe tolhendo os movimentos e as palavras, tudo suportado sem nada reclamar.

Esta fidelidade ao Deus de todos os nomes, e a Jesus de Nazaré, acendiam nele a indignação.

Indignação

Indignação por ver profanada, na vida de crianças, jovens, mulheres, adultos e idosos, a imagem de Deus que cada um carrega.

Indignação por ver que alguns se julgavam donos da terra e de seus bens, e espoliavam povos indígenas dos territórios que, secularmente, ocupavam, e expulsavam famílias de posseiros que, há décadas, cultivavam o solo, para alimentar sua família.

Indignação por ver trabalhadores brutalmente explorados, submetidos a condições semelhantes ao trabalho escravo.

Indignação por ver a sociedade imersa numa desigualdade doentia, que aceita como “normal” o acúmulo de bens nas mãos de uns poucos, que o homem seja senhor e superior à mulher, que indígenas e negros sejam tratados como pessoas de segunda categoria.

A indignação de Pedro também brotava diante da igreja que, ao invés da simplicidade das primeiras comunidades, apostava na ostentação, que, ao invés de se alicerçar sobre a radical igualdade de todos nascida do batismo, aceitava poder e privilégios para alguns, negados aos demais.

Essa indignação em Pedro se convertia em rebeldia.

 A Rebeldia

Rebeldia, que se traduziu em denúncias públicas: denunciou a ESCRAVIDÃO E FEUDALISMO NO NORTE DE MATO GROSSO. Um grito diante da exploração do trabalho escravo.

Denunciou a situação social do povo da região e os promotores das injustiças, na carta pastoral, lançada no dia de sua ordenação episcopal: UMA  IGREJA DA AMAZÔNIA EM CONFLITO COM O LATIFUNDIO E A MARGINALIZAÇÃO SOCIAL. 

Rebeldia que se transmutava em poesia, com o forte sabor de profecia. As palavras prorrompiam como torrentes; com arte, refletiam as agruras da vida dos pobres e esquecidos. A sina dos povos indígenas de nossa América foi celebrada pela palavra poético-profética de Pedro, na Missa da Terra Sem Males, e o calvário dos negros escravos, na Missa dos Quilombos.

Rebeldia que não se limitava às palavras. Materializou-se em estilo de vida e de comportamento. Queria ser tratado simplesmente como Pedro, sem qualquer adjetivo ou adendo.

Rebeldia que se concretizou no Santuário dos Mártires, dedicado àqueles e àquelas que lutaram defendendo a justiça e a vida, independentemente de sua crença.

Sua rebeldia em relação à Igreja foi proclamada no dia de sua ordenação, dispensando qualquer adereço que o diferenciasse ou afastasse do povo ao qual viera servir.

 Ele, com toda sua equipe pastoral, inaugurou uma igreja que rejeitava qualquer forma de poder, apostava no serviço ao povo. Refletia-se numa vida simples e austera, num olhar inquieto sobre o sofrimento do povo e no ouvir constante do que o Senhor falava através dos pobres. O bispo não era quem ordenava o que se devia fazer, tudo era discutido entre todos, padres, religiosas, leigos e leigas. As decisões eram compartilhadas por todos. Uma igreja que queria ser fiel ao Evangelho, aplicando o que o Concílio Vaticano II e a Conferência dos Bispos latinoamericanos, em Medellin, tinham apontado.

A coerência entre a palavra e a vida, em Pedro, fez com que sua figura transcendesse, em muito, a Prelazia de São Félix do Araguaia e até a própria Igreja.

O Testemunho de Pedro Casaldáliga nos desafia:

  1. Leia as mensagens e poemas que falam de Pedro – tanto os que estão nesta sessão, como de outros de seus escritos.
  2. Ao ler, destaque as passagens que mais o tocam...
  3. Com elas, elabore um testamento, que inspire sua prática.