No limiar do milênio
No limiar do milênio
José Comblin
O novo milênio começou com um acontecimento histórico: o encontro mundial de Porto Alegre, Brasil. Foi sinal de início de nova época. De 25 a 30 de janeiro de 2001, 20 mil delegados de milhares de Organizações Não Governamentais (ONGs) juntaram-se para apresentar soluções alternativas à atual sociedade neoliberal imposta pelos Estados Unidos (EUA) apoiados por quase todos os governos do mundo à totalidade do universo. Durante a década de 90, o modelo neoliberal conquistou o mundo intelectual, político e econômico quase sem resistências populares.
No entanto, já em Seatle, em dezembro de 1999, violentos protestos de milhares de manifestantes conseguiram chamar a atenção dos poderosos, chegando ao ponto de impedir que, em uma reunião dos chamados Grandes, a Secretária de Estado dos EUA tomasse a palavra. Em 2000, houve várias concentrações internacionais para manifestar hostilidade às reuniões dos poderosos, uma delas na própria cidade de Washington. Agora, pela primeira vez, reuniram-se delegações não-governamentais, mas dos povos, para propor outra sociedade.
Foi um primeiro encontro, mas, muito espontâneo, que permitiu aos dominadores darem-se conta de que o movimento cresce no mundo inteiro, para condenar o modelo da atual sociedade e organizar movimentos de resistência, oferecendo alternativas. É um grande sinal de esperança, porque se venceu a impressão de que o modelo neoliberal seria inevitável, o único possível. Foi como uma nova mobilização dos povos, sem dúvida terá repercussões. A resistência vai crescer.
O Primeiro Mundo está desconcertado. As eleições americanas coincidiram com o anúncio de uma verdadeira recessão na economia norte-americana. Os centros financeiros mundiais estão sem saber o que fazer… O novo presidente inaugura seu mandato em ambiente de preocupação e para alguns de angústia. Os capitais começam a temer. No Japão a crise econômica e política não encontra soluções. O país perdeu a autoconfiança. Na Europa a resistência ao modelo neoliberal imposto pelas novas entidades européias vai crescendo. O mal-estar da agricultura e da pecuária, com os escândalos da vaca-louca e outros, mostra que algo está seriamente equivocado no sistema de produção do Primeiro Mundo.
Daí, não se pode concluir que os Grandes, agora arrependidos, mostrarão mais inclinação a ajudar o Terceiro Mundo. Ao contrário. As eleições norte-americanas levaram ao poder um presidente republicano decidido a comprometer muito menos ainda o EUA com os problemas do mundo dos pobres.
Militarmente, o novo Secretário de Estado, que foi o articulador da guerra do Golfo, é o grande defensor da teoria do ”zero mortos”. Ou seja, os EUA só intervirão militarmente nos problemas e nas guerras do mundo, se tiverem a segurança de que não morrerá nenhum cidadão estadunidense. Suas intervensões serão exclusivamente aéreas, conforme o modelo do Golfo e de Kosovo. Os EUA deixarão que os povos em conflitos se matem, sem intervir. Crêem que foi muito bom não intervir em Ruanda para impedir o genocídio de um milhão de tutsis. Se houver novos genocídios, o Primeiro Mundo não se moverá.
A Europa se afasta mais e mais do resto do mundo. Transforma-se em uma província isolada, com menos pretensões mundiais, entretida com seus próprios problemas. Não parece estar em condições de desempenhar um papel importante nas relações mundiais.
Para os EUA, o problema mundial mais importante é o petróleo. Sentem que o petróleo árabe está muito inseguro. Querem diversificar suas importações. A isso se atribui o Plano Colômbia. A Colômbia é uma grande exportadora de petróleo para os EUA. Por isso, convém que haja suficiente segurança no país. Assim, o Plano Colômbia vem reforçar as forças armadas colombianas. O pretexto é a guerra contra o narcotráfico. Na realidade é a guerra contra a guerrilha e muitas das armas oferecidas ou vendidas para o Plano Colômbia caírão em mãos dos paramilitares.
A situação da Colômbia preocupa os EUA, que gostariam que houvesse uma força armada conjunta dos países latino-mericanos para lutar contra o narcotráfico nesse país. Estão decididos a não enviar nenhum soldado estadunidense para uma situação tão perigosa. Por isso, querem que outros morram pelas armas dos narcotraficantes, em lugar deles. Até agora as nações latino-americanas não manifestaram nenhum entusiasmo e ninguém se moveu.
Na África, os EUA querem reforçar o poder militar na Nigéria e Gana. A Nigéria é um dos grandes exportadores de petróleo. Ademais, os norte-americanos gostariam que os nigerianos fossem a força policial da África para manter a ordem no Continente.
Na América é provável que o novo governo norte-americano insista em antecipar o Tratado de Livre Comércio das Américas (ALCA). Há resistência por parte do Brasil que teme ser reduzido a um país menor, ao se integrar ao sistema norte-americano. O Brasil teria que renunciar à ambição de liderar um bloco distinto, cujo centro seria o Mercosul. Os países pequenos acreditam que a integração na economia estadunidense é a única solução. A experiência do México lhes parece positiva. Por exemplo, o Equador e El Salvador já adotaram o dólar como moeda nacional.
A idéia dominante no mundo de hoje é que os países que não têm petróleo deixam de ter importância. Formam o “mundo inútil”. Ficam abandonados a sua sorte. Na África há guerras em Serra Leoa, Congo, Angola, Ruanda, Burundi, Sudam, Uganda, Somália, Eritréia… e há conflitos graves e violentos em Senegal, Costa do Marfim, Nigéria, Chade… para citar os mais importantes. Isso não comove mais os privilegiados do mundo. Deixam que se matem. Vendem armas a todos os combatentes e compram seus diamantes.
A Indonésia está a caminho da desintegração. Há conflitos violentos em Bornéu, Molucas, Sumatra… Em toda parte da Ásia que estava sob o império soviético falta estabilidade e a qualquer momento pode acontecer alguma coisa. Também as repúblicas do Cáucaso estão em estado de conflito latente ou aberto. O Curdistão continua lutando para conquistar sua independência. O Afeganistão está em guerra permanente… Isso tudo faz parte do “mundo inútil”. O mundo interessante é o do petróleo. Onde há petróleo, aí nasce uma elite de magnatas de extrema riqueza e o povo continua na mesma miséria. Na América Latina há os exemplos da Venezuela e do Equador.
O que em outros tempos se chamava “ajuda ao desenvolvimento” praticamente desapareceu. Entretanto subsiste a ajuda militar, pois um mundo em guerra necessita de muitas armas e seu comércio é um dos mais importantes, junto com as drogas e o petróleo. No meio de tudo isto, a ONU está muito fraca, porque só pode agir com a bênção dos EUA.
Na América, o mundo indígena continua à frente dos combates. É a parte mais dinâmica da sociedade. No Chile, Bolívia, Equador, os indígenas mostram-se ativos e no Brasil a celebração dos 500 anos da conquista dos portugueses deu-lhes a oportunidade para manifestar seus protestos e suas reclamações.
De tudo isso, o mais importante foi a marcha zapatista de Chiapas no México e a grande concentração no Zócalo em 11 de março de 2001. Esta será, talvez, vista, um dia, não só como a data mais importante do ano, senão da década e de uma longa época. A presença do exército zapatista no México muda a história. Ainda haverá muitas etapas na luta de emancipação dos povos, porém esta data é um grande sinal.
Desde 1997, a Igreja católica dedicou-se, sobretudo, à celebração do Jubileu. Em Roma, houve um programa muito bem elaborado que deu à Igreja romana a sensação e o consolo de um grande prestígio. Milhões foram a Roma buscar indulgência e venerar o sucessor de Pedro, entre eles os muitos latino-americanos.
Alguns crêem que a Igreja se mostra muito discreta, para não dizer silenciosa, nesta hora da História. Ela também terá abandonado o “mundo dos inúteis”?
As Igrejas neo-pentecostais desabrocham com um ritmo incrível. Praticam cada vez mais as receitas aprendidas nos EUA. Tratam os povos qual um grande mercado, conhecem e aplicam muito bem as regras do marketing, de uma forma que desperta a inveja de vários pregadores católicos. Não têm os traços arcaicos dos primeiros pentecostais: sabem usar não só os recursos das novas tecnologias, senão também as últimas modas da juventude. Pregam a “teologia da prosperidade” e sabem recolher dinheiro, muito dinheiro. Segundo eles, os dons de Deus se pagam, e se pagam caros. É difícil não reconhecer no neo-pentecostalismo uma alteração do pentecostalismo original.
A Igreja, entretanto, não sente as repercusões da oposição que se mobiliza contra a sociedade neoliberal. Sem dúvida, nesta década, o desafio vai-se manifestar e então a Igreja terá que reagir. Será para consolidar uma aliança com os poderes ou para defender a causa dos pobres e dar o significado cristão ao movimento de sublevação global contra o modelo neoliberal, como foi no Brasil há poucos anos? Veremos.
José Comblin
Paraiba, Brasil