Nova sociedade: novos rumos e as Igrejas?

 

Marcelo Barros

Vivemos em uma sociedade marcada pela ânsia de novidades. O comércio fatura por lançar a cada momento produtos novos e as pessoas correm atrás de novas sensações. A informática e as redes virtuais ameaçam mudar radicalmente o panorama do trabalho humano substituindo as pessoas por máquinas que podem substituir os humanos e com mais economia para seus donos. Por vários motivos, esse panorama da quarta revolução industrial é inquietante. A sociedade se move atrás de novidades que não trazem mais vida e mais liberdade para a maioria da população e para a vida do planeta. E é preocupante ver que, enquanto a sociedade busca novidades, as religiões se agarram a tradições e a uma postura, por princípio, avessa ao que é novo.

As religiões vêm de sociedades patriarcais nas quais os velhos são mais honrados e os valores antigos venerados. Quase sempre, o Espírito é identificado com o poder e serve para legitimar reis e dominadores que se proclamam filhos de Deus para garantir autoridade e domínio sobre o povo.

É verdade que todas as religiões tiveram e têm profetas e profetizas que propuseram mudanças e novidades fundamentais. Cinco séculos antes da era cristã, na Índia, o príncipe Siddarta Guatama, o Buda, deixa seu palácio e a família para se identificar com pobres e mendigos. Ensina a humanidade a compaixão como princípio divino que renova o mundo. Ao invés de falar de Deus, procurou ajudar a humanidade a superar suas dores e viver de forma equilibrada e serena. No Oriente, Confúcio, Lao-Tsé e outros sábios propuseram conciliar o antigo e o novo, sempre buscando a justiça, a paz e a harmonia entre as pessoas e com o universo.

A África, berço de toda a humanidade, descendente do Homo Sapiens e continente de onde partiram as civilizações, foi cenário de cinco mil anos de sofrimentos e violências. Mesmo em meio a tudo isso, os povos desenvolveram uma espiritualidade de comunhão com a Terra e a natureza. Contemplam a presença divina uns nos outros e no universo. Vivem a esperança de tempos melhores na consulta dos búzios e escuta dos ancestrais.

O território que, hoje é a América Latina, desde 30 mil ou ao menos 20 mil anos tem sinais de ocupação humana. Desde séculos antigos da nossa era, se têm vestígios de civilizações. Elas tinham os mesmos pecados da desigualdade social e das lutas para se sobrepor. No entanto, em seu meio, o Espírito Divino suscitou comunidades que buscavam o bem-viver, a terra-sem males e a harmonia entre os humanos e a Terra.  

Desde os seus inícios, a cultura judaico-cristã é marcada pela memória do Êxodo. Nela a intuição da presença divina vem como Palavra que chama quem é escravo a se libertar. Deus não é mais quem nos eleva da terra ao céu e sim energia de libertação que nos chama a transformar o mundo. Não legitima o poder e sim subverte e transforma as sociedades. Dentro dessa tradição profética, surge Jesus de Nazaré como testemunha do projeto divino de um mundo transformado. Segundo os evangelhos, ele chama isso de “reino de Deus” ou reinado divino. Conforme os evangelhos, para mostrar esse programa divino, pouco a pouco, emergindo no mundo, Jesus propõe tirar do tesouro da fé coisas novas e velhas (Mt 13). E o mais revolucionário: propôs nova forma de crer e de falar de Deus, como Pai e Mãe de ternura, Amor, presente em nós e solidário aos/as oprimidos/as e excluídos/as do mundo. Afirmou ter sido possuído pelo Espírito de Deus (O Espírito veio sobre mim e me enviou) para curar os doentes, libertar os prisioneiros e anunciar aos pobres e oprimidos a boa notícia da libertação (Cf. Lc 4, 16- 21). Só que a libertação não seria só para um povo (os judeus) nem para uma religião (a sinagoga), mas para todos os humanos, especialmente os “de fora” (Lc 4, 25-30). Os religiosos da época de Jesus e de todos os tempos têm dificuldade de aceitar esse amor que não tem fronteiras. Para vivenciar essa novidade, Jesus reuniu um grupo de amigos e amigas que, depois do seu desaparecimento, se constituíram como movimento dentro do Judaísmo para abrir as comunidades do Espírito ao mundo inteiro, independente de raça e religião.

Inspiradas em Jesus, ainda no século I da nossa era, nasceram as Igrejas. Igreja é um termo grego que significa assembleia. Nas periferias de cidades do mundo grego, as comunidades de discípulos e discípulas de Jesus tomam o seu nome (Ekklesia: Igreja) das assembleias de cidadãos das cidades gregas e se constituem como novas e revolucionárias assembleias de pobres e de não cidadãos do império (paroiké era o termo pelo qual eram chamados). Ora, segundo a Lei Júlia (44 a.C), no Império Romano, todas as religiões eram permitidas, mas não as associações de pobres e trabalhadores. Mesmo assim, as Igrejas se constituíram, resistiram a incompreensões e mesmo algumas perseguições por parte de autoridades do império e se firmaram no mundo antigo. No início, cada comunidade ou Igreja tinha seu estilo cultural, sua organização e sua forma de expressar a fé. A maioria das comunidades eram constituídas por pessoas pobres que na Igreja tinham reconhecida a sua dignidade e ali ensaiava um jeito novo de viver a partir da igualdade e da comunhão de bens. Essa abertura à realidade fez com que as comunidades cristãs, pouco a pouco, até sem se darem conta, fossem absorvendo as culturas dos locais onde se inseriam e fossem assumindo alguns elementos das antigas religiões do Império, como o sacerdócio compreendido como classe de homens sagrados e o culto como expressão de sacrifício oferecido a Deus.

No século IV, a Igreja cristã já se parecia tanto com as antigas religiões que foi aceita pelo imperador Constantino (313) como legítima e, anos depois, oficializada por Teodósio, como religião oficial (395).

Durante séculos, o Cristianismo se identificou com o poder imperial. Por isso, nunca se abriu aos movimentos proféticos que queriam renovar a forma de viver a fé e atuar no mundo em prol dos marginalizados. Mesmo pouco compreendidos, esses movimentos trouxeram até nossos dias uma espiritualidade a partir dos pobres, na contramão da sociedade dominante. Atualmente, depois de tantos séculos, as Igrejas cristãs, mesmo divididas, continuam apegadas a suas tradições. Parecem pouco dispostas a se inserirem como assembleias dos novos paroikés (sem documentos), sem-terra, sem-teto e sem trabalho que continuam como estrangeiros no mundo.

Na Igreja Católica, há sete anos, temos um bispo de Roma, patriarca das Igrejas de tradição latina, que, diferentemente dos papas anteriores, insiste no diálogo humilde e despretensioso com a humanidade. Dá prioridade às pessoas sem terra, sem teto e sem trabalho. Propõe uma Igreja em saída, isso é, que bispos, padres e fieis se desloquem dos centros de poder que criam revoluções digitais que excluem a maior parte da humanidade para o mundo dos pobres e excluídos. Em sintonia com o papa, as pastorais sociais católicas e evangélicas cultivam uma espiritualidade sócio- libertadora. Assim, o caminho da intimidade com o Espírito se dá na caminhada social e política por um novo mundo possível. É nas lutas sociais e na inserção em meio aos pobres que as comunidades eclesiais de base e militantes de pastorais sociais experimentam a presença do Amor Divino conduzindo e transformando suas vidas pessoais, à medida que transforma as estruturas do mundo. Como sempre ocorreu com os movimentos proféticos que Dom Helder Camara chamava de “minorias abraâmicas”, esses grupos que, nas Igrejas, vivenciam e propõem uma espiritualidade sócio- libertadora são minorias.

 Nos anos 90, no sul do México, os índios de Chiapas reuniam pessoas e comunidades do mundo inteiro nos “Encontros da humanidade pela Vida e contra o Neoliberalismo”. A partir de 2001, movimentos sociais reuniram a sociedade civil internacional no processo contínuo e nos diversos encontros do Fórum Social Mundial. Atualmente, entidades e grupos de vários continentes estão propondo uma Ágora dos/das Habitantes ou dos/das Cidadãos/ãs da Terra. É doloroso perceber que em todos esses processos e iniciativas, a presença de ministros/as ou representantes das Igrejas cristãs, como também de outras religiões é quase inexpressiva. A Igreja, que, conforme um bispo do século IV, deveria ser ensaio de uma humanidade nova, conforme o projeto divino da justiça e da paz, não parece sensível e preocupada em se inserir e colaborar com esse projeto. Parece ser os não religiosos e não cristãos que, hoje, lembram o que diz o quarto evangelho: “Ele deveria morrer não apenas pelo povo, mas para reunir na unidade todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo” (Jo 11, 52).

É a sociedade nova alternativa, representada pela sociedade civil alter-mundialista que sinaliza essa possibilidade de novos rumos para uma sociedade nova baseada na justiça, na paz e na comunhão com a Terra e com a natureza.