Novas causas e novas crenças

 

Ivone Gebara

Tempos conturbados fazem retomar novas causas e novas crenças. Ambas estão unidas embora muitos imaginem que estejam separadas. Tomo a palavra causas como sinônimo de valores, de lutas que abraçamos. Por exemplo, o direito fundamental de todos de comer, beber e ter moradia digna. Temos que lutar para obtê-lo. Nossa luta tem assim uma causa, uma razão e torna-se igualmente uma crença, expressão de minha fé na necessidade vital de comida, bebida e casa. Tomo a palavra crenças no sentido das coisas comuns que acreditamos serem direitos, valores e sentidos.

Assumo uma causa porque creio nela e creio porque a acolho como algo importante. Por exemplo, podemos lembrar a ‘opção preferencial pelos pobres’ que desde a década de 1970 foi uma referência de fé, ou seja, uma causa e uma crença na vida dos cristãos da América Latina. Esta é uma causa fruto de uma grande crença, a crença de que as relações humanas precisam ser restauradas a partir daqueles que mais foram excluídos de seus direitos. E esta crença e causa é identificada a uma orientação de Deus e de Jesus para as ações humanas.

Grandes causas e grandes crenças nascem no miúdo de cada dia quando a gente não suporta mais sentar-se à mesa de um restaurante e ver uma criança faminta com a cara colada na vitrine do restaurante, ou quando, a gente vê um grupo de pessoas num frágil barco deixando sua terra porque são proibidos de viver nela. O coração explode de justa

ira e daí, pode nascer uma grande causa/crença.

Nosso mundo hoje é marcado por revoluções tecnológicas, pelo desaparecimento das antigas formas de trabalho, pela robotização crescente, pela comunicação instantânea. Há novas linguagens e novos sentidos que se delineiam. A partir dessas novidades ficamos nos perguntando sobre o sentido mais profundo de nossas crenças aquelas que nos distanciam de nossa animalidade egocêntrica e nos abrem para a percepção do outro como minha imagem e semelhança. Nossas crenças profundas nos vieram da educação que recebemos inspirada por certo Cristianismo que nos convidava a repartir o

pão, a túnica e o vinho.

Ao longo dos séculos, as Igrejas cristãs vestiram essas crenças muitas vezes de ideias poderosas e linguagens filosóficas distantes de nossa realidade. Envolveram-nas de mistérios, de afirmações que fugiam do observável e do possível no mundo. A linguagem em que nos ensinavam a fé e o amor era difícil de entender e nos provocava medo ou repetição automática da doutrina. Esse processo levou ao descolamento das crenças em relação às causas e necessidades vitais que elas representavam.

O contexto atual do mundo nos revela o crescente domínio da ciência e da tecnologia nas relações humanas assim como a redução das coisas importantes da vida a mercadorias que se compram e se vendem. Isto revela a fragilidade não das crenças profundas que nos humanizam, mas da linguagem em que essas crenças se manifestam e da cooptação a um mundo individualista. Com isso, as grandes causas e crenças em relação à justiça, a ajuda mútua e aos direitos correm o risco de se apequenar e de diminuir sua força social. Conflitos entre massas e minorias reaparecem agora sob uma luz e nos alertam a assumir novos rumos.

Por um lado, observamos o crescimento das massas que aderem a um cristianismo neo-pentecostal onde o extraordinário, o mágico, o imediato tem um lugar especial. Por outro lado, uma minoria de intelectuais ‘cristãos’ ou críticos das religiões parece descrer das crenças e simbologias religiosas do passado e da crença das massas expressando um mal estar na sociedade e nas instituições cristãs atuais.

 Falar de massa dá a impressão que se vai falar de algo socialmente homogêneo como se um enorme grupo de pessoas representasse ‘um só homem’ ou como se fossem uma grande ‘massa de pão’ informe. Do ponto de vista das crenças o que as massas crêem de fato? Não sabemos com exatidão, apenas observamos que fazem sempre apelo a Deus como legitimador de suas posições sociais, como abrandador de seus medos e provedor de suas necessidades.

Na realidade, a massa imaginada como algo homogêneo, não existe. É uma criação da imaginação de alguns analistas para situar a maioria das pessoas que parecem levadas como um rebanho a crer no que é ensinado como provindo de Deus. A massa é o ‘outro’, o contrário das minorias pensantes. Ou seja, são as minorias que nomeiam a massa e talvez como oposição às suas convicções. Entretanto, a massa para ela mesma não é massa. Apenas circunstancialmente segue as ordens de quem comanda, por exemplo, numa liturgia. ‘Cantem’ e todos cantam. ‘Batam palmas’ e todos batem. ‘Recitem o Credo’ e recitam. Mas, quem responde à sua vida cotidiana é cada indivíduo como se não fosse dessa massa. Cada um é uma pessoa com história própria, porém, desconhecida dos teóricos.

A massa é na realidade um conjunto de individualidades não assimiláveis à mesma unidade formal ou teórica pré-definida. A massa é a diversidade, a multiplicidade, a diferença que espanta quando reunida num mesmo local. E a partir dela pensamos que no seu meio não há sujeitos pensantes, não há escolhas ou liberdade. Imaginamos uma multidão levada por emoções diversas, submissa a autoridades que parecem conduzi-la para onde querem. Será de fato só isso? Não creio, basta observar a complexidade da vida!

As massas são sempre diferentes. Boa parte vive no provisório da sobrevivência, ou no provisório dos desejos cultivados pelo capitalismo e pelas religiões da prosperidade. Outras parecem conscientes do que vivem e marcadas pelas mesmas carências lutam por casa, por terra e trabalho. Em ambas existem sujeitos sofredores de muitos males impostos pela sociedade de consumo. A massa é D. Maria que pede escola para os filhos, é Sr Pedro que sofre de dores insuportáveis e busca alívio, é D. Francisca que busca moradia, é o jovem gay cujo companheiro foi morto na avenida, é a menina estuprada pelo padrasto... A massa é o morro, a favela, o pessoal do córrego, das palafitas à beira-rio, dos cortiços que crescem de forma assustadora nas cidades. Massa de individualidades sofredoras! Massa carregando celular e falando com o mundo, tendo seguidores nas redes sociais! Massa ‘matéria prima’ das elites da direita e da esquerda! Massa analisada por teóricos, por líderes que imaginam dar solução aos seus problemas

visto que ela representa a porcentagem maior dos cidadãos do país. Massa que não produz pensamento teórico sobre a realidade, mas a vive como pode.

As minorias são os chamados setores organizados em nome da liberdade, da libertação ou do Senhor Deus. São os que dizem ter consciência histórica, não se dirigirem por chavões, não se submeterem à autoridade ou à ideologia de um chefe, salvo em momentos excepcionais. As minorias são as que apostaram nos absolutos de um mundo de justiça, de igualdade, de liberdade, dos valores puros, da partilha de bens, dos projetos históricos em vista do futuro, das utopias do Reino. As minorias querem ser

a voz dos sem voz, o grito dos excluídos, o socorro dos aflitos, o refúgio dos pobres e injustiçados, os bons pastores que carregam no colo a ovelha perdida. As minorias são as que acreditam que conduzirão as massas para um final feliz expressado de diferentes

maneiras. São elas que poucos anos atrás liam a Bíblia a partir dos pobres, que falavam do Reino como justiça e pão. São elas que deram a vida como minorias combatentes e outorgaram o título de mártires a alguns de seus companheiros. São elas que afirmaram que seus mártires eram a imagem de Jesus e os continuadores de sua missão. E por isso mesmo foram crucificados e mortos e ressuscitarão talvez antes do terceiro dia e verão a luz da liberdade brilhar sobre os povos da terra. Que consequências têm essas imagens e esperanças hoje?

Para algumas minorias foi uma decepção constatar o quanto os pobres e marginalizados não seguiram a risca seus conselhos libertários! Tantas análises de conjuntura, discursos sobre estruturas, desenhos de pirâmides, sonhos em círculos, cartilhas de educação popular... Tudo parece agora em vão!

Hoje, apesar do mundo diferente em que vivemos as Igrejas cristãs continuam recitando o credo de Nicéia, o mesmo aprovado por Constantino no século IV. Continuam tomando-o como o símbolo de sua fé. Entretanto, como eu/nós temos participação nessa fé, nessa crença, nessa linguagem hermética? Como através de sua proclamação expressamos a direção de nossas ações e de nosso amor?

Suspeito que ‘Nicéia’ hoje seja um Credo deslocado de suas causas, descolado da realidade e de seus sentidos. Outro Credo para os ‘corações de carne’ de hoje seria necessário? Sim. Não um Credo na revolução cibernética, não um credo sobre a tecnologia, não um credo sobre o universo... Estas afirmações estão em outro nível da atividade humana. Necessitamos de um Credo sobre o que de fato acreditamos capaz de sustentar a vida e que possa ser enxertado nas diferentes tradições como um ato criativo atual. Um Credo que expresse minha/nossa fé hoje, uma fé que não oprime meu corpo e nem minha inteligência, um Credo simples, inclusivo com linguagem mutável e centralidade de significado prático comum. Credo nascido de diferentes comunidades que não devem se perder nas descobertas das ciências e tecnologias, mas se encontrar no coração do mistério que nos habita hoje. Poderíamos chamar essa dimensão de espiritualidade, uma dimensão da busca dos seres humanos de um sentido sempre novo que orienta e nutre sua vida, que não pode ser reduzida a nenhuma equação matemática, a nenhuma fórmula química, a nenhum boletim metereológico ou a construção de um novo robô.

Se parecemos perdidos em nossas formulações de fé, na realidade isto pode ser positivo. Precisamos achar de novo o Credo que nos fala às entranhas em meio ao mundo das muitas tecnologias e ambições.

Estamos vivendo um tempo extraordinário!

Tempo de muito sofrimento emocional e social, mas também tempo de depuração de nossa pretensão de conduzir a história na direção de um modelo único que imaginamos ser o da felicidade da humanidade. Um modelo único de justiça e liberdade! Um modelo de Bem! Um modelo segundo Deus, o Pai todo poderoso! Caíram nossas velhas crenças. Caiu o homem velho, a mulher velha, não pela idade, mas pelas ilusões e discursos que mantiveram. Caíram as minorias convencidas de sua arrogante sabedoria. Rasgou-se o véu do Templo! Algo novo está nascendo.

É preciso estar atentos para perceber a suave brisa passando e indicando por onde acontecem as novas formas de convivência, as novas crenças e as novas dúvidas que sempre nos habitarão. Embora estejamos caminhando entre espessas nuvens, hoje ninguém mais poderá gritar o novo ‘está aqui’ ou ‘está lá’. Ninguém mais tem certeza do conteúdo dos Livros Sagrados, na palavra do pastor, na do político, na do papa. Todos estamos sendo convidados/as a aprender uns dos outros quem somos nesse mundo que já não é mais o de ontem, já não é mais o de Jesus de Nazaré, não é o da Igreja primitiva, não é o de Marx, não é o de tantos outros que nos precederam... Tecnologias, memória artificial, comunicação instantânea, foguetes lançados que pousam na Lua, em Marte, Big Bang... Desapropriações, destruições, desastres, guerras, condenações seguem o mesmo rumo de ontem... E o sedento coração humano continua lá...

Que novos relatos cristãos são os nossos hoje? Nossos, mas quem é esse nós? Mais uma vez esse nós é plural e diversificado. É massa personalizada. Esse nós tem caminhos múltiplos, e deveria talvez convergir para o único segredo comum presente em todas as manifestações da sabedoria humana. Qual seria ele? Atrevo-me a dizer que o segredo presente nelas e que precisa sempre de novo ser resgatado é que tudo converge para a criação de caminhos de sobrevivência comum da humanidade e do planeta, caminhos onde cada um e cada uma deveriam ser saciados segundo sua fome de pão, amor e justiça.

Velhas utopias nascidas e renascidas nos corações humanos! Utopias libertas de um palavreado complicado que as enterrou e fez acreditar mais na oposição de umas às outras do que na convergência. No ‘novo velho mundo’ que é o nosso precisamos cultivar convergências em todos os jardins... E, sobretudo partilhá-las...

Afinal, não somos todos nascidos do mesmo pó de estrelas? E gerados no seio de uma bela chipanzé portadora de um erro genético que nos fez surgir como nova espécie? Todo o resto, nós inventamos, e continuaremos inventando!

Nesses tempos conturbados, um pouco de humildade nos faria muito bem. Baixemos nossos deuses e deusas ao chão, respeitemos a misteriosa explosão criadora de uma estrela e o erro genético criador de tanta poesia. Aceitemos o convite de cantar baixinho

enquanto faz escuro. Desse canto poderemos fazer um Credo menos poderoso, menos imperial, mais cheio de samba e movimento. Um credo de alegrias, gratidão e de pequenas coisas... “Eu acredito que o mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor...!”. Mensagem recebida pelo whatsapp!