Novas perspectivas da comunicação: Do tsunami comunicacional à informação como valor

Novas perspectivas da comunicação:
Do tsunami comunicacional à informação como valor
 

Sílvio Mieli


Sob o impacto do maremoto com formação de tsunamis que devastou o sudeste da Ásia no final do ano passado, alguns cientistas compararam a força do fenômeno à energia liberada por 30.000 bombas atômicas. O paralelo entre um processo natural (um terremoto que modificou o eixo de inclinação da Terra) com outro artificial e de origem bélica (bomba A) revela as escolhas de toda uma civilização (autodenominada “Sociedade da Informação”). “O êxito científico, incluindo o domínio militar, iguala-se à potência dos fenômenos geofísicos. Esta falta de humildade é sumamente preocupante para o porvir”, reagiu o filósofo e urbanista Paul Virilio diante da comparação científica.

O exemplo ilustra uma característica importante da cultura contemporânea. Vivemos sob um paradigma que concebe os elementos orgânicos, inorgânicos e tecnológicos como se fossem um dado, uma cifra, pura informação quantificável, intercambiável, recombinável, passível de apropriação e livre modificação. No caso do tsunami, os grandes símbolos, as referências míticas, os enigmas relacionados ao dilúvio são substituídos por explicações tecnocráticas. E se deixarmos o discurso científico para entrarmos no noticiário político, o tom será o mesmo. A secretária de Estado americana Condoleezza Rice descreveu o tsunami como “uma oportunidade maravilhosa”, que “pagou altos dividendos” para os EUA.

Desde a II Grande Guerra, graças à influência da cibernética, da teoria matemática da informação e, posteriormente, com os aportes da microbiologia e da bioinformática, fomos educados a compreender a informação como um “número” e a tratar a comunicação como um instrumento utilitário, uma espécie de “funil” destinado a canalizar os “dados brutos” para determinados interesses específicos. Ora, quando uma concepção desencarnada de informação encontra uma máquina de guerra capitalista instrumentalizada para o lucro, temos a formação de um complexo avassalador, cujos desdobramentos já conhecemos. Quantos boletins emitidos pelas grandes redes de televisão mencionaram a sistemática devastação ecológica da costa do sudeste asiático, provocada pela construção de hotéis, resorts, refinarias, pela pesca predatória de camarões e pela destruição da barreira de corais?

No entanto, diante da sistemática produção do horror capitalista transmitido ao vivo, não basta descrever a barbárie e denunciar o seu poder. A lição dos recentes embates entre o movimento social e os conglomerados midiáticos aponta para a construção urgente de linhas de fuga da comunicação dominante. Ao mesmo tempo, a gravidade da situação nos compele a vivenciar a comunicação como uma prática ativa, ao invés de sermos meros receptores de informação, sempre filtrada pelos funis corporativos.

Da contra-informação ao midiativismo

A estratégia dos meios de comunicação alternativos entre o final dos anos sessenta e meados dos anos oitenta estava assentada no modelo de contra-informação, uma estrutura na qual, segundo o pesquisador John Downing, as classes e o Estado capitalista são analisados meramente como controladores e censores da informação. Portanto caberia à mídia alternativa quebrar o silêncio, refutar as mentiras e fornecer a sua “verdade”. Mas o cenário político, econômico e comunicacional sofreu uma alteração radical nas duas últimas décadas do século XX.

Setores do movimento social por vezes ignoram que a comunicação não é somente uma ferramenta para atingir determindo objetivo. Ela é mais um nível de ralidade, uma dimensão que tem vida própria e deve ser encarada a partir de novos parâmetros de análise. Considerando-se que os modos de existência não cessam de se recriar, talvez seja o caso de olhar para um amplo processo de utilização subversiva dos meios de comunicação, o midiativismo, que com suas novas linguagens e, principalmente, com o seu bom humor, nos ajuda a retomar a dimensão do corpo, da mente e do espírito, completamente colonizados pela lógica corporativa.

Ao contrário dos movimentos das décadas de 60, 70 e 80, as táticas midiativistas que despontam em meados dos anos 90, fortemente inspiradas pelo zapatismo, são operações anticorporativas e anticonsumistas. Estas novas práticas estão situadas num “quadripé”, que envolve os eixos da arte, da comunicação, da tecnologia e da política. Da esfera da arte essa tática retira a capacidade de resistir à sociedade imperial de controle, influenciada pelas vanguardas dadaístas e surrealistas e potencializada pelo diálogo com as tecnologias digitais. Aqui estão envolvidos coletivos (como o Wu Ming e Luther Blisset, dentre outros) que aboliram a noção da autoria e passaram a praticar uma espécie de “artivismo radical”, como diria o artista brasileiro Bené Fonteles. Neste contexto estão inseridas também as práticas de interferências culturais, que provocam ruídos em outdoors, subvertem mensagens publicitárias, utilizam recursos da antipublicidade para boicotarem e denunciarem grandes corporações, além de criarem campanhas pontuais contra o consumo e contra os abusos da televisão.

Em relação à comunicação, estas formas originais de subjetividade investem num processo de aproximação com o outro, principalmente em relação aos movimentos sociais. Novas redes de comunicação afetiva são tecidas, auxiliadas pelo que sobrou do caráter não hierárquico e descentralizador da internet. O melhor exemplo são os Centros de Mídia Independentes, dimensões sociais liberadas temporariamente do capitalismo globalitário. O slogan do Centro de Mídia Independente já diz tudo: SEJA A MÍDIA! que quer dizer: “Torne-se a mídia, tome posse do que foi usurpado”. Desde as manifestações de Seattle, em 1999, os Centros de Mídia Independente impulsionaram o nascimento de vários coletivos e agências alternativas de informação, que já constituem uma rede qualificada, que se articula rapidamente, como ficou comprovado nas recentes manifestações contra a invasão imperial no Iraque e no caso da derrota do neofascista Aznar na Espanha. Esta rede, enriquecida pela tecnologia da autopublicação (caso dos blogs), está pautando cada vez mais a chamada grande imprensa, que perdeu completamente o vínculo com os movimentos sociais, via de regra desqualificados, criminalizados e demonizados pelos noticiários da mídia corporativa.

Do eixo tecnológico destacam-se as campanhas pelo software livre, as discussões sobre os limites da propriedade intelectual (como o Creative-Commons), a luta pelo uso adequado das tecnologias que podem causar impacto ambiental, a utilização criativa dos fóruns, o projeto de enciclopédia coletiva (wikipedia), a livre troca de arquivos via internet (P2P) e as demais formas de guerrilha comunicacional (via hackers).

Finalmente, da esfera política surgem formas de cidadania e de vida em sociedade que já trabalham com a crise do modelo institucional herdado das sociedades disciplinares. Muitas das novas experiências políticas estão inspiradas na cultura anarquista, que enfatisou as múltiplas realidades de opressão e sempre se preocupou mais com os movimentos sociais do que com as instituições e investiu prioritariamente nos modelos de auto-gestão. Rádios livres, telecentros, laboratórios de mídias táticas, grupos de teatro dialogando com assentamentos do MST são exemplos de politização na arte, na comunicação e na tecnologia. Além disso, emergem questões novas, como o futuro do humano e a biotecnologia. A este respeito o midiativismo denuncia empresas como a Monsanto em duas frentes: por um lado monitora suas ações corporativas, mapeando-as e informando a sociedade do seu conteúdo, por outro lado denuncia a sua pobreza filosófica. Nas duas frentes joga um papel que a grande mídia se recusa a cumprir, qual seja o de argumentar que as empresas de biotecnologia representam a insegurança alimentar, e não o oposto, ao colocarem em risco a biodiversidade ambiental.

Diante da estratégia avassaladora do capital, o midiativismo articula uma tática de ocupação que poderia ser definida como a “arte dos fracos” (Michel de Certeau). É um movimento dentro do campo de visão do inimigo e no espaço por ele controlado. Todos os recentes avanços por uma outra globalização, incluindo-se os fóruns sociais mundiais, forjaram uma cultura que pressupõe uma nova utilização dos meios de comunicação. Para o midiativismo, toda obra de arte contém germes de resistência e todo meio de comunicação deve ser reiventado, o que significa dizer que seu fluxo de informação tem que ser subvertido. Os caminhos para este processo foram sintetizados na introdução desta Agenda, quando Dom Pedro Casaldáliga nos convida a lutar pela cidadania mediática a partir do ser humano, que é “o grande meio de comunicação”.

Na verdade, Dom Pedro nos convida à construção de uma nova forma de convivência social, a partir de valores e sentidos articulados comunitariamente. Parte-se aqui da informação como uma diferença, uma intensidade, um valor e uma medida de transformação. Redimensionada, a informação, assim como a sociedade que leva o seu nome e carrega o seu destino, poderá empreender “ações em comum” (comunicações), que ousem desconstruir o poder. Como ensina Michel Serres, “loquaz, oca e vazia, a linguagem nada significa se não encarna”.

 

Sílvio Mieli

Grupo Soliário São Domingos

São Paulo