NOVOS RELATOS DE LIBERTAÇÃO PARA RECRIAR A VIDA
Daylíns Rufín Pardo
Quando criança era comum ouvir adultos dizerem: “Não confunda liberdade com libertinagem". Frase comum, em distintas situações, para indicar limites, não imposições. Quem a dissesse não queria cooptar a ação do outro, mas deixar espaço para perceber até onde poderia ir. Mostrava que havia uma linha invisível que todos conheciam. Portanto, não deveria ser violada. Também trazia um juízo de valores sobre quem não respeitava os limites. Deveria haver o cuidado pessoal e o cuidado com o outro.
Na adolescência, no contexto da Igreja Católica, ouvi a palavra “liberal”, espécie de versão da primeira expressão, mas o sentido era diferente. “Fulana é muito liberal”, “fulano é um liberal”, quase sempre significavam que ultrapassaram os limites ou, no melhor dos casos, não foram capazes de entender onde estavam os limites inerentes à tradição ou à prática da fé.
Visavam, acima de tudo, endossar os limites que o grupo havia estabelecido como parte de sua cultura. Uma pessoa rotulada de liberal passou a significar - perigosamente - alguém que não tinha limite definido, o que ainda é entendido em contextos eclesiais como a pessoa capaz de fazer qualquer coisa, não necessariamente positiva.
Em casos extremos, um ser humano liberal não é apenas um herege, mas não mais digno de Deus. E aqui o cuidado pela outra pessoa é diluído, perdido, por conta da convicção tão forte implícita no termo.
Quando jovem, comecei a estudar teologia e surgiu uma nova palavra ligada à mesma família: libertação. Em vista do que implicava, a licenciosidade e o liberalismo já mencionados, parecia não ter lugar ou espaço. A noção de pecado estrutural desenvolvida pela Teologia da Libertação era um terreno epistêmico em que ambas as palavras e seus sentidos personalistas se dissolviam como sombras. A noção da outra e do outro que também sou eu e que somos todos, como grupo de fé, pessoas ou comunidade, situavam no centro o corpo social, os corpos históricos e um novo modo de entender o “deve ser”, o bem, o mal e as relações humanas.
A liberdade não foi reduzida à trave no olho do irmão. Da mesma forma, a partir desse conceito de libertação, deixou-se definitivamente de confundir liberdade não apenas com libertinagem, mas com o que diz respeito a um sujeito, masculino ou feminino, “tachado” de liberal. Uma versão mais abrangente, plural e dinâmica emergiu e redimensionou a noção no contexto social e da fé. Uma nova cultura de liberdade foi criada: a liberdade em Deus encarnado no meio do povo, recriando-se, revigorando-se e tornando-se verbo, corpo e espaço.
Era a década de 1990, e até então tinha tudo bem claro. Mas à luz de uma práxis de fé e de vida sustentada, inevitavelmente me pergunto: liberdade, devassidão, liberal, libertação... O que agora entendemos por isso? Quais narrativas, discursos e teologias sustentamos com base na compreensão atual desses conceitos? O que estamos fazendo? Com quem? Para quem e para quantos? Quais assuntos compõem nossas rotas e histórias legítimas de libertação? Quais rostos são equitativos e qualitativos em nossos sonhos de libertação e de nossas ações?
É importante parar e nos questionar. Há algo não apenas socialmente prático ou eclesiologicamente pastoral em repensar nossas ideias sobre liberdade, devires e derivados. Há a urgente dimensão ecológica e planetária implícita no ato de nos saber como espécie humana diversa que, a partir da matriz pluralista (sujeitos, sentimentos e conhecimentos), se preocupa em conhecer atitudes, posições e ideias de liberdade que nos oprimem hoje. E além de quais arquétipos de libertação dessas compreensões e tradições libertadoras herdadas devemos nos libertar.
Há a dimensão soteriológica que ultrapassa o confessionário, os credos e visões de mundo no mero ato de nos conhecermos necessitados de libertação. Para acolher a possibilidade de libertação, de libertar-nos. Humanamente é hora de nos re-conhecer em uma pluralidade que não nos reduza em palavras e conceitos, mas em uma diversidade empática. Capaz de sussurrar, compartilhar e entender com o coração o que oprime conjuntamente, e adquirir consciência a partir desse corpo vital maior que formamos. Somos, acima de tudo, criaturas humanas.
É um paradoxo intransponível que duas palavras nascidas de liberdade - como liberal e libertinagem - sirvam para unir e separar, como família humana, de uma comunhão maior. E, ainda pior, que façam acreditar que a libertação se alcança suprimindo a diferença.
São tempos para honrar profeticamente, mas não preconceituosamente. Há a variedade profusamente humana que Deus nos fez, que a vida nos faz. Todas e todos somos iguais, porque somos diferentes. O imenso sopro da liberdade vivifica e deve nos abrir para dentro, para fora, juntos no reconhecimento.
Novas palavras possibilitarão outras ações. Novas histórias de libertação são necessárias. Sejamos parte delas!