O beija-flor antes da Revolução 4.0
Maria José Meira
Eu me lembro de “Benke”, canção escrita por Milton Nascimento para o jovem líder Benke, dos Ashaninkas. Música indígena, na qual um beija-flor convida a uma visão holística da natureza... Tudo está conectado...
Olhar e chegar lá
Ver a realidade exige que cheguemos até ela. A música convida: Colibri me chamou: veja / Lua branca chegou na hora. Para cada um se localizar na realidade, na hora presente, com todos os sentidos abertos, e encontrar a força que vem e renova...
O contexto global se amplia e investiga o que se chama Revolução 4.0. Diariamente se ouvem mais palavras e expressões como robótica, internet das coisas (ou de todas as coisas), biotecnologia, nanotecnologia, inteligência artificial e computação quântica.
Vivem-se tempos de mudanças rápidas. Dois mundos coexistem. O acesso a essa revolução não é para toda a humanidade. O relatório da Oxfam de 2018 ressalta que 26 pessoas têm mais riqueza do que a metade da humanidade. Os dados definem quem está dentro e quem é excluído da Revolução.
O pensamento funciona a partir do que os sentidos conseguem captar e perceber da realidade. Isso tem a ver com o tempo e o espaço. Os pés pisam e trilham a mente e o coração. Molda-se a visão da vida e do mundo.
O espaço pelo qual nos movemos mostra se estamos no centro ou na periferia da sociedade da informação, se caminhamos e produzimos reflexões dentro e a partir da periferia como lugar de criação de alternativas. O tempo nos situa no campo das ideias. O contexto em que vivem distintas sociedades e a visão de mundo dominante é a mistura do mundo pré-moderno, moderno e pós-moderno, coexistindo com relativa harmonia, ou de forma intolerante e violenta.
Nos processos de criar outro mundo possível, perguntamos: o pensamento está acompanhando as mudanças rápidas e profundas? O “discurso” motiva, atrai, inspira, vincula e articula as pessoas para a proposta que se quer impulsionar?
Tudo está dentro e fora
O companheiro colibri leva à consciência de que “tudo está dentro e fora”. Não há realidade dissociada da vida. Laudato Si, 138, ressalta: “O tempo e o espaço não são independentes um do outro, e até átomos ou partículas subatômicas não podem ser considerados separadamente”.
A visão de mundo da qual somos filhas e filhos, para organizar e dividir o mundo em ideias reais e distintas - a suposta objetividade científica como conhecimento absoluto - nos situa em uma camisa de força, e a continuidade da vida está em risco.
A mesma visão segue o seu desenvolvimento, hoje expresso em otimismo sobre a Revolução 4.0. Afirma-se que marca uma nova revolução tecnológica, que implica nada menos que a transformação de toda a humanidade. E ainda precisamos entender melhor a velocidade e a amplitude dessa revolução. No entanto, uma nova sensibilidade se desenvolve a partir das entranhas desse contexto. E nos leva a outras formas de pensar e agir na mesma realidade.
Mudamos a mentalidade. E descobrimos que somos parte da Terra e não donos dela. Contemplamos a criação de pequenas e múltiplas iniciativas na aldeia global. Elas fazem passar de hábitos e costumes individualistas a um olhar em rede da história e da realidade.
Olhamos o universo e percebemos nele o ser humano. Na visão cristã, somos criados para ler o livro da criação e conhecer o autor da vida. Ilia Delio, em sua obra “Cristo em Evolução”, propõe, em perspectiva teilhardiana, olhar o mundo criado como sacramento de Deus. Amar a Deus é amar o que Deus ama.
Desse ponto de vista, cada pessoa é um universo, dentro do qual o pó da experiência se aglomera e forma uma unidade. Deus - Mistério do Amor - leva o universo a evoluir e o conduz à sua culminação com a ajuda dos seres humanos.
Reconhecemos a evolução e a fazemos continuar. Vemos o ser humano como parte do todo interconectado. Um processo regido pelo Amor, uma força que energiza e permeia todo o Cosmos e gera a afinidade entre os seres - destaca Ilia. Histórias que inspiram criatividades alternativas.
Amin Maalouf, em “Identidades Assassinas”, propõe superar a visão de
um suposto pertencimento fundamental (a uma religião, nação, raça ou etnia), e buscar a identidade de vários pertencimentos interligados na vida de cada pessoa. Os pertencimentos fazem ser o que somos em contínuo movimento evolucionário de inter-relação e interdependência.
A visão, segundo o autor, oferece a missão de tecer laços de união, dissipar mal-entendidos, trazer alguns à razão, moderar outros, reconciliar... Sua vocação é ser elo, ponte, mediadora entre diversas comunidades e diferentes culturas.
Andar por aí torna possível abrir caminhos de diálogo que ajudam a sair da espiral de autodestruição em que estamos submergindo, lembra o Papa Francisco.
Ressurgir da espiritualidade. Talvez por causa da mesma crise e mal-estar coletivo e a falta de sentido que provoca a oferta de felicidade do mundo capitalista-liberal, hoje a espiritualidade ressurge. Ela desperta para a vida. Não está desconectada do próprio corpo ou da natureza ou das realidades deste mundo, mas vive-se com e nelas, em comunhão com tudo (LS 216).
Isso revela o desafio de retornar ao silêncio essencial. Silenciar as palavras para a vida despertar. Ouvir os sussurros da natureza, ouvir as vozes de nossos irmãos e irmãs como parte de nós mesmos, enredados na misteriosa trama da vida; escutar-nos na múltipla diversidade que carregamos por dentro; e descobrir em tudo a presença surpreendente do Deus-Amor que nos habita.
Paradigma da unidade. A consciência de que tudo está interligado leva à unidade. Mobilizar energias de dentro e de fora, em processos comunitários/coletivos levam além das oposições dualistas que dividem e compartimentam a vida. Andar pelos espaços da unidade mostra a visão holística que inclui, gera compaixão e integração. Estamos literalmente “enredados” no tecido da Vida.
Abrimo-nos ao diálogo e à interculturalidade como busca de convivência com o diferente.
Trabalhar e abrir os olhos
O beija-flor desafia a colocarmo-nos em movimento a partir do olhar. Vivemos um processo acelerado de profundas mudanças no campo científico-tecnológico. No marco da Revolução 4.0, o biomimetismo imita padrões e estratégias da natureza, o que possibilita no cotidiano a presença de máquinas-robôs que fazem tarefas cada vez mais sofisticadas e até melhor que os seres humanos.
O olhar é frágil e poderoso ao mesmo tempo. Do outro lado da mesma realidade, aposta-se no olhar que faz a memória. Os ancestrais deixaram como herança o que somos hoje como coletivos em lutas e utopias. Eles incentivam a envidar esforços para articular criativamente o poder dos relatos - voltar a contar histórias.
E fazê-lo a partir de uma visão essencialmente apreciativa da vida, recuperando o que não tem preço e não pode ser comprado. Espaços nos quais não há relógio, pois o tempo livre prevalece; não há dinheiro, pois ocorre na lógica do amor; não há fronteira, pois toda a Humanidade e a Mãe-Terra são minha família, minha mãe, meu pai, minhas irmãs, meus irmãos.
Dar vida, receber a vida. À maneira de Jesus, ser humano protótipo da humanidade, “onde o finito e o infinito se encontram, o humano e o divino são unificados, o material e o espiritual se fundem”, afirma Delio. “À maneira de tantos homens e mulheres, comunidades e organizações, que seguiram esses mesmos caminhos”.
O esforço para pensar e buscar juntas e juntos pede uma transformação da imaginação, suficientemente mobilizadora e geradora de nova visão de mundo. Criada no exercício perseverante de olhar a vida em sua diversidade, profundidade e amplitude, como alternativas ao modelo tecnológico e digital da vida. Uma cosmovisão que parte da consciência possível e que nos ajuda a avançar em tempos de tantas mudanças.
O beija-flor pede para trabalhar e abrir os olhos.