O fundamento do direito
O fundamento do direito
Alfredo Gonçalves
A consolidação do Direito coincide com a aurora dos “tempos modernos”, a qual, não obstante as divergências, pode ser localizada do decorrer do século XVII. Três balisas nos orientam nessa direção. A primeira vem do matemático e filósofo René Descartes (1596-1650). No Discurso do Método (1637), uma expressão clássica e lapidar resume a emergência da subjetividade, isto é, a consciência da pessoa humana enquanto ser autônomo e racional: Cogito, ergo sum – Penso, logo existo. As duas outras balisas referem-se ao surgimento dos direitos civis: de um lado, a Guerra da Independência Americana, com a famosa Declaração da Independência (1776); de outro, a Revolução Francesa (1789), com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Um olhar retrospectivo
Mas não podemos esquecer que os fundamentos do Direito mergulham suas raízes em tempos bem mais antigos. Ainda que de passagem, convém ter em conta duas tradições que influenciaram decisivamente o pensamento ocidental. Na tradição judaico-cristã, segundo o relato do Livro do Gênesis, os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus, com a dignidade de filhos do Criador. Daí a insistência dos textos bíblicos, notadamente os escritos proféticos, sobre a justiça e o direito, com especial destaque para “o órfão, a viúva e o estrangeiro”. Não custa lembrar que dessa predileção divina decorre a “opção preferencial pelos pobres”, os excluídos e indefesos, os últimos e mais necessitados, diz o Papa Francisco.
Já a tradição greco-romana sublinha o dever e o direito de cidadania, prerrogativa aberta a todos, na organização da pólis (cidade, em grego), com vistas ao maior bem do maior número de pessoas. A democracia, com a participação livre do cidadão, tem aí suas raízes mais remotas. No mundo romano, particularmente na República, prevalece a ideia do Direito civil, ao qual todo cidadão pode apelar. O apóstolo Paulo, por exemplo, quando de sua prisão, o fez na qualidade de cidadão romano com direito a ser julgado em Roma. Porém, tanto a tradição judaico-cristã quanto a tradição greco-romana, no contexto marcadamente patriarcal do mundo antigo, excluíam as mulheres e os escravos do direito de cidadania.
Fundamento moderno do Direito
Nos tempos modernos, dois filósofos e duas obras são especialmente responsáveis pelos alicerces do Direito. Comecemos com o francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Entre suas obras, destaca-se o Contrato Social, ou mais concretamente, Do Contrato Social ou princípios do direito político (1762). Antes dele, porém, o inglês Thomas Hobbes (1588-1678) havia publicado De Cive (1642), ou seja, Do Cidadão. Do ponto de vista socio-político, ambas as obras traduzem uma mudança de paradigma, entendido aqui como uma constelação de princípios, leis, normas, regras, instituições que dão sentido a determinada cultura e visão de mundo. Com o novo paradigma, o poder do Estado e o Direito do cidadão derivam não da vontade divina, como se pensava no mundo antigo e medieval, mas de um contrato entre as forças sociais existentes. O poder de governar e o direito dos governandos se organizam a partir de uma espécie de acordo social que, embora assentado sobre interesses conflitivos dos vários grupos, dispensa a legitimação sagrada.
Hobbes e Rousseau deslocam o fundamento do Direito da esfera sobrenatural para a ordem das relações humanas: pessoais, familiares ou comunitárias ou sociais, culturais e políticas. O primeiro o faz porque, conforme sua obra Leviathan (Leviatã), “o homem é o lobo do próprio homem”, sendo a sociedade “uma guerra de todos contra todos”. Disso resulta a necessidade de um pacto entre as partes, para garantir o direito de cada um e de todos, frente aos outros e frente ao Estado. Diferentemente de Hobes, Rousseau no conjunto de sua obra acredita na “bondade primordial da natureza humana”. Corrompido pelos embates, conflitos e interesses históricos, o ser humano moderno engendrou injustiças, contradições que desintegram o tecido social. Por isso a necessidade de novas relações para reestabelecer o “paraíso perdido”. Em consequência, ao lado do Contrato Social, o sociólogo elabora uma crítica à propriedade privada, origem, segundo ele, dos maiores males da humanidade decaída.
Protagonistas do Direito
Mas a história do Ocidente, no processo dialético de avanços e recuos, é marcada por outras balisas. No iluminismo do século XVIII, seguindo as intuições do renascimento e da herança humanista, o ser humano emancipado da tutela divina fará da razão, da ciência e da pesquisa experimental os referenciais básicos para o saber e a verdade. A tradição religiosa enquanto valor absoluto é substituída pela experiência e pela novidade. O movimento dinâmico da história toma o lugar das certezas estáticas e imutáveis. Com a Revolução Industrial, a tecnologia e o progresso se encarregam de produzir mercadorias para satisfazer essa enorme “sede de coisas novas”, numa “agitação febril” cada vez mais acelerada. Ambas as expressões entre aspas são extraídas da encíclica Rerum Novarum (1891) do Papa Leão XIII.
A Doutrina Social da Igreja (DSI), inaugurada com esse documento, não deixa de ser um dos fundamentos ao Direito, sobretudo no que se refere à dignidade da pessoa humana. Com sua insistência sobre algumas linhas mestras, tais como o direito de associação e organização, a primazia do trabalho sobre o capital, o salário familiar, a função social da propriedade privada, o papel do Estado diante do cidadão, a busca do bem comum, o desenvolvimento integral como novo nome da paz – a DSI jamais abdicou da centralidade dos direitos humanos. Na verdade, desde Leão XIII até o atual pontífice, o fio condutor da dignidade humana, levou os escritos da DSI a uma crítica dos regimes ditatoriais e totalitários. Trata-se de defender o pequeno e fraco contra a lei do mais forte, presente no mercado total e no poder centralizado.
Diz o Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (2013): “Assim como o mandamento ‘não matar’ coloca um limite claro para assegurar o valor da vida humana, hoje devemos dizer ‘não a uma economia da exclusão e da iniquidade’. Esta economia mata (...). Isto é exclusão. Não se pode mais tolerar o fato que se jogue fora a comida, quando há gente que sofre de fome. Isto é iniquidade. Hoje tudo entra no jogo da competividade e da lei do mais forte (...). Como consequência desta situação, grandes masas de população se vêm excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectiva, sem via de saída. Considera-se o ser humano em si mesmo como bem de consumo, que se pode usar e depois jogar fora. Demos início à cultura do ‘descartável’” (cfr. EG, nº 53). O desequilíbrio entre progresso tecnológico e crescimento econômico, por uma parte, e o subdesenvolvimento humano, por outra, já havia sido denunciado pela Gaudium et Spes (1965) e a Populorum Progressio (1967).
Desafios atuais do Direito
A mesma crítica ao contraste entre concentração de renda e riqueza ao lado da exclusão social foi aprofundada por numerosos pensadores. Tomemos o caso do historiador e filósofo inglês Bertrand Russell (1872-1970), em sua obra História da filosofia ocidental. De acordo com ele, se por uma parte as democracias ocidentais eliminaram as dinastias políticas tradicionais, não conseguiram eliminar as dinastias da renda e do acúmulo de riquezas. Estas permanecem intocáveis, independentemente de como tenham sido obtidos os bens hereditários: enquanto a herança política foi abolida pelo processo democrático, a herança econômica permanece sagrada e intocável. Com tal riqueza, as classes dominantes reintroduzem no cenário a dinastia política. O poder econômico e financeiro, manipulando partidos, líderes, mídia, impõe as regras do processo eleitoral, perpetuando-se no poder de acordo com os próprios interesses. A luta democrática no Ocidente parou a meio caminho: abalou as ondas superficiais do jogo político, mas deixou intatas as correntes subterrâneas das forças econômicas.
Além desse entrave relativo à democracia econômica, a história do Direito tem outros desafios urgentes. É verdade que sua trajetória ganhou extraordinário relevo a partir dos horrores causados pelas duas grandes Guerras Mundiais, culminando com a inédita tragédia do Holocausto. Diante de tanta barbárie, surge em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sobre as cinzas e ruínas, escombros e cadáveres dos conflitos, e diante da ameaça de novas conflagrações de natureza atômica, os cidadãos reclamam maior autonomia e mais respeito diante do poder absoluto e do Estado.
Mas também é certo que muitas pessoas, grupos, povos e nações continuam desprotegidos, à margem de seus benefícios. Estão em jogo a integridade física, os direitos sociais, políticos, econômicos, culturais, ambientais – que passam a fazer parte da agenda internacional de entidades, movimentos e organizações não governamentais. O Direito, em sentido amplo, se estende à humanidade com o um todo e à biodiversidade do planeta Terra, ambas ameaçadas por uma política econômica sem freios e devastadora.
Alfredo Gonçalves
São Paulo, SP, Brasil - Roma, Itália