O Jardim venceu

O Jardim venceu

Sandro Gallazzi


Uma leitura conflitual dos textos bíblicos, mostrando a orientação antiecológica dos textos sacerdotais e monárquicos, e a alternativa dos textos da casa da mulher.

Salomão ofereceu a Javé, para o sacrifício pacífico, vinte e duas mil vacas e cento e vinte mil ovelhas (1Rs 8,63).

Esta incrível matança de animais acompanhou a inauguração do templo de Jerusalém. Depois vieram os holocaustos cotidianos, os inúmeros sacrifícios de todo tipo, as ofertas e os sacrifícios pelos pecados. Para todos esses sacrifícios, os sacerdotes porão fogo sobre o altar, ordenando a lenha sobre o fogo (Lv 1,7): fogo para queimar incenso, para assar as carnes, para consumir os holocaustos e para cozinhar os santos dos santos, as comidas exclusivas dos sacerdotes; fogo que nunca podia se apagar (Lv 6,13). Foi preciso estabelecer um rodízio entre as famílias para o fornecimento da lenha a ser queimada sobre o altar (Ne 10,34). E tudo isso em uma região semiárida como a Judeia, onde até o orvalho era considerado bênção de Deus.

O altar tinha dimensões impressionantes: a base de dez metros por dez e a altura de seis: em cima havia a gigantesca lareira, de seis metros por seis, onde eram queimadas as ofertas (Ez 43,13-17). O altar era o centro arrecadador da tributação que pesava sobre os camponeses de Judá (Dt 12,5-6).

Reis e sacerdotes ergueram templos e palácios explorando o trabalho de milhares de pessoas e cortando inúmeras árvores do Líbano. Como todos os poderosos, não tinham nenhuma preocupação com a vida, nem da natureza, nem das pessoas. Encontramos na Bíblia páginas escritas para legitimar seus projetos de dominação e de incrível violência: são memórias de extermínios de populações inteiras, de devastação de bosques e florestas, de cidades entregues ao fogo. Matanças, destruições e devastações, muitas vezes, legitimadas como sendo ordem de Deus.

Uma leitura acrítica dos textos bíblicos pode levar a crer que Deus não tem maior cuidado com a natureza que ele criou para submetê-la ao domínio dos homens, sobretudo dos seus eleitos, que devem triunfar de seus inimigos, custe o que custar.

Desta maneira foi lida a bênção de Deus ao homem e à mulher: Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra (Gn 1,28).

Uma interpretação literal deste domínio justificou a propriedade privada, legitimou uma equivocada centralidade do homem sobre a natureza e embasou, teologicamente, a chamada civilização que está explorando a natureza até sua exaustão. E a imagem de Deus, muitas vezes, tornou-se grileiro de terras, destruidor de florestas, explorador do trabalho escravo e financiador da pistolagem. Um exército devastador e assassino, cuja violência está retratada em todas as páginas da história humana e que nada tem a ver com a mensagem bíblica da criação.

A criação - denunciava Paulo - está submetida à vaidade, mas não por sua vontade. É por isso que geme e suporta as dores do parto. Ela, também, aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Só quando nós nos comportarmos como verdadeiros filhos de Deus, a criação será, junto conosco, libertada da escravidão da corrupção.

Ao gemido da criação, soma-se o nosso gemido, somam-se os gemidos inefáveis do Espírito, para que, fruto dessa profunda e misteriosa inter-relação de vida, tudo concorra para o bem dos que amam a Deus (Rm 8, 19-29).

Tudo e todos somos parte desta imensa vida, que é e que nos vem de Deus. Ele que, desde o princípio, com seu poder criador, venceu as trevas, as águas dos abismos e o deserto – antigos símbolos mesopotâmicos das forças da morte - e gerou a vida.

As trevas viraram luz, as águas viraram rios, mares e chuvas, o deserto virou terra verde cheia de vida. Desde então, o sol, a lua e os astros povoam o mundo da luz; os seres do mar e dos céus povoam as águas; os animais e o ser humano – homem e mulher – formam os povos da terra. Tudo em uma perfeita harmonia e integração, vida gerando vida, onde tudo era e é bom, muito bom.

Comunhão de vida onde a mulher e o homem podem se amar, imagem única de Deus, presidindo a terra, por sua paixão criadora e amorosa, e lutando contra todas as forças caóticas da morte.

A memória do Deus vencedor de todos os «males» animou e anima as esperanças dos pobres, dos excluídos, alimenta a certeza de que o Deus da vida sempre estará ao lado deles com seu poder vivificador e vencedor. Eis porque a memória do Deus criador é sempre associada à memória do Deus fiel, libertador dos oprimidos.

Bem-aventurado aquele cuja esperança está no Senhor, seu Deus que fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há, que mantém para sempre a sua fidelidade e que faz justiça aos oprimidos e dá pão aos que têm fome (Sl 145,5-6).

Usar a narrativa da criação para justificar a dominação sobre a natureza e sobre os outros seres humanos será, sempre, uma blasfêmia.

É bonito, então, encontrar nas páginas bíblicas a memória dos que sempre buscaram e defenderam a vida: das mulheres, dos pobres, dos profetas e das profetisas que não aceitaram a palavra dos poderosos quando ensinavam que a árvore da vida tinha ficado para trás, num jardim do qual todos tinham sido expulsos e cujo caminho estava fechado e guardado por seres mitológicos que só podiam ser amansados pelos poderes dos reis e dos sacerdotes, mediante inúmeros sacrifícios.

Eles e elas souberam acreditar em um processo permanente de criação e recriação de céus sempre novos e de terra sempre a ser renovada. Era possível buscar a renovação do milagre do Éden, acreditando que toda a natureza continuava viva, bonita, capaz de louvar e bendizer o Senhor: as montanhas podiam pular de alegria, as árvores sabiam bater palmas, os rios podiam saltar e até relâmpagos e trovões eram sinais da presença de Deus.

Era o que celebrava a Sulamita, no cântico dos cânticos, quando nos anunciava que a imagem de Deus não eram os reis, os sacerdotes, os grandes, mas o homem e a mulher que se amam: os dois, juntos, nus, carne um da outra, sem nenhuma vergonha (Gn 2,24-25), finalmente bons. Jardim reaberto, reconstruído, do jeito que Deus o tinha pensado, desde quando tudo começou.

Vinho, mel, leite, trigo, perfume, óleo, narciso, açucena, nardo, palmeira, maçãs, romãs, açafrão, canela, cinamomo, incenso, mirra, aloés, lírios, bálsamo... Gamos, ovelhas, pombas, rolinhas, cabritas, gazelas, rebanho tosquiado... Sol, lua, vento norte, vento sul, Líbano, Hermon, Jerusalém, Galaad, Damasco, Carmelo... Ouro, prata, pedras preciosas, marfim, safiras, mármore... Tudo, toda a natureza, participa deste canto, deste encontro de amor e de vida.

Porque querer ser como Deus, se Deus é como nós, quando nós nos amamos, além de qualquer dominação?

O Sumo Sacerdote queria ser como Deus: o único, o santíssimo, o excelso, o controlador da justiça e do perdão divino, o mediador da aliança, o ungido/messias.

Os reis queriam ser como Deus: ergueram seus tronos e se proclamaram filhos de Deus (2Sm 7,14) para legitimar seu poder, eles, também, ungidos/messias.

Ungidos, perfumados, com óleos riquíssimos e cheirosíssimos, são os corpos dos amantes que se entregam um ao outro.

É óleo escorrendo, é nardo que difunde seu perfume, é saquinho de mirra entre os seios; é monte de mirra, é colina de incenso; é o perfume das roupas como a fragrância do Líbano, são dedos escorrendo de mirra, lábios como mirra que flui e se derrama.

Ídolos e poderosos nunca mais! Única imagem de Deus é Adam, a humanidade, filha da terra, filha da mulher: um conjunto de fertilidade, de vida, de abundância. É a ecologia mais profunda, aquela capaz de enxergar profeticamente, na natureza, a casa e a fonte do amor.

São dois projetos em conflito: o projeto da vida abundante para todos e todas, o projeto dos que contemplam a natureza como mãe, dom, casa e jardim; e o projeto do mercado, da concentração, de todos os que, capitalistas ou socialistas, só enxergam a natureza como «matéria-prima» capaz de gerar riquezas e lucros.

Sempre estiveram em conflito, continuam estando e provocando conflitos. Assim como foi o conflito no qual templo e palácio se associaram para cancelar o caminho, a verdade e a vida.

Porque Jesus proclamou: Ninguém pode servir a dois senhores (...).Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6,24); porque Jesus nos abriu os olhos para ver os pássaros do céu e não os celeiros repletos, para ver os lírios do campo e não as roupas suntuosas dos reis.

Naquele dia, Jesus nos mostrou o caminho da preservação da vida, da verdadeira sustentabilidade: Não ajunteis tesouros na terra (...)Ajuntai tesouros no céu (...)Pois onde está o teu tesouro, aí também está o teu coração (Mt 6,19-21).

Contemplar a criação, vendo nela a ação amorosa do Pai do céu, nos convoca a crer que comida, bebida e roupa não vêm da angústia do possuir, do acumular, mas são frutos da justiça do Reino de Deus. Procurai, em primeiro lugar, o reino e sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo (Mt 6,33).

Jesus foi condenado à morte, mas o jardim venceu. Na manhã da ressurreição Maria de Mágdala e Jesus se encontram no jardim. Ao abraço que acontece, segue-se o envio. Do jardim devemos sair, não mais expulsos, mas para convidar todos a entrar: o jardim é a nova casa dos que sabem que o Deus e pai de Jesus é o nosso Deus e pai, nosso e de tudo o que vive: o irmão Sol, a irmã Lua, a irmã mãe Terra que nos sustenta e nos governa.

 

Sandro Gallazzi

Macapá, AP