O legado de Frai Bartolomeu

Onde estão os profetas?
O permanente legado de Frai Bartolomeu

Miguel LEÓN-PORTILLA


«Destruição das Índias» foi como denominou frei Bartolomeu de Las Casas (1484-1566) as ações perpetra-das por não poucos conquistadores e “encomenderos (encomendadores de índios por concessão real) no Novo Mundo. Ele fez inumeráveis denúncias desta des-truição, que incluiu privação da liberdade dos índios, derrocada de seus líderes naturais, despojos e imposi-ção de duros trabalhos, acompanhados de mortes e extinção de povos e culturas. Escreveu sem descanso e expressou seus argumentos a Carlos V, a bispos e funcio-nários reais. Sua vida foi um legado em defesa dos índios.

Hoje, há mais de quatrocentos anos de distância, ainda sabemos que suas denúncias foram aproveitadas pelos inimigos da Espanha que forjaram a “lenda negra, reconhecemos –como fizeram juristas, historiadores, antropólogos e outros de muitos países do mundo– que o sevilhano Las Casas foi o primeiro porta-voz e defensor ativo dos direitos humanos.

Sendo tremendas suas denúncias e alegações, o Imperador lhe deu ouvidos. Longe de ver nele um traidor ou um exaltado, expediu várias leis e cartas reais nas quais, como que assumindo os protestos de Las Casas, reconhece as grandes injustiças padecidas pelos índios e ordena que sejam atendidas suas demandas. Outro tanto fez mais tarde o rei Felipe II. Como exemplo, cito um trecho da carta real de 27 de maio de 1582, dirigida ao arcebispo do México:

«Fomos informados que nessa terra estão a extinguir-se os nativos, devido aos maus-tratos que seus “encomenderos lhes reservam. E que, havendo-se diminuído tanto os ditos índios, em algumas partes faltam mais que um terço... E tratam-nos pior que a escravos e como tais se encontram muitos, vendidos e comprados de um a outro “encomendero, e há alguns mortos por açoites, e mulheres que morrem... E que há mães que matam seus filhos, dizendo que o fazem para livrá-los dos trabalhos de que padecem; e que hão concebido os ditos índios um grandíssimo ódio ao nome cristão e têm aos espanhóis como enganadores e não acreditam no que ensinam».

Tais palavras fazem eco ao que, anos antes, havia denunciado Frei Bartolomeu. Ele, que foi um censor das obras espanholas – o que nenhuma outra potência imperial teve – influiu assim na política e no direito de sua pátria em favor dos índios e, inclusive, dos escravos africanos. Apesar de ter pensado originalmente que os africanos poderiam substituir aos índios nos trabalhos mais duros, arrependeu-se logo, e foi o primeiro a condenar aberta-mente que fossem levados ao Novo Mundo, opondo-se à sua escravização da mesma maneira como à dos índios.

À luz de tudo isso, ocorre-me uma pergunta: hoje, há mais de quatrocentos anos de distância, o moderno império que se chama Estados Unidos da América tem por ventura um censor como frei Bartolomeu de Las Casas? Estaria disposto o nada ilustrado, nem ilustre, George W. Bush a escutar, como fez Carlos V, as vozes de denúncia que se levantam contra ele, a respeito de suas sinistras ações no Afeganistão, no Iraque e também contra Cuba? Estaria ele disposto a receber alguém que lhe demovesse a consciência em conversa, frente a frente?

A primeira grande questão suscitada por Las Casas referia-se às causas justas para fazer a guerra. Conseguiu Bush justificá-la com a idéia de prevenção, procurando armas de destruição em massa que ninguém encontrou? Que responderia o senhor Bush sobre a acusação de haver provocado milhares de mortes de inocentes, mulheres, crianças e velhos no Afeganistão e no Iraque, assim como de seus próprios soldados enviados para o matadouro?

Voltemos a lembrar os excessos das conquistas no Novo Mundo, tantas vezes condenadas hipocritamente nos EUA, ainda que praticadas igualmente por eles. É verdade que os conquistadores destruíram valiosos monumentos indígenas, mas acaso a invasão do Iraque não propiciou saques e destruição de grandes tesouros culturais? E se os conquistadores buscavam ouro, não ambiciona também o senhor Bush o ouro negro que é o petróleo?

Em contraste às loucuras do psicopata que governa hoje o império mais poderoso da Terra, têm sido opostas à sinistra “guerra preventiva” as posições assumidas até agora por países como França, Chile e México. Também positiva foi a atitude de José Luis Rodríguez Zapatero, que diferente de seu predecessor de triste lembrança, retirou as tropas espanholas do Iraque.

 

Miguel LEÓN-PORTILLA

México