O “ponto Deus” no cérebro
O “ponto Deus” no cérebro
BASE BIOLÓGICA DA ESPIRITUALIDADE
Leonardo Boff
Notamos hoje em todas as partes do mundo uma grande efervescência religiosa. Depois de difamada, perseguida e condenada ao desaparecimento por modernas ideologias negadoras de Deus e da transcendência, desde o iluminismo e culminando no marxismo, a religião a tudo resistiu e agora marca o seu retorno vigoroso. E ele não é isento de ambiguidades que devem ser criticadas, mas o fenômeno é inegável. Parece que os seres humanos se cansaram de bens materiais, exaltados pela propaganda e também pelo excesso de racionalidade que domina todos os âmbitos de nossa cultura e de nossas profissões.
Já se falou belamente que o ser humano é possuído por duas fomes: a de pão, que é saciável, e a de beleza, de transcendência e do sagrado, que é insaciável. É nesta segunda fome que se situa a religião e todos os caminhos espirituais. Eles surgiram na história e sempre de novo se atualizam na perspectiva de atender a esta fome insaciável.
Nos dias atuais a dimensão espiritual e religiosa ganhou um reforço considerável, vindo do mundo das ciências da vida. Ela não é algo que se restringe às instituições religiosas e é entregue à mera escolha humana. Nem as religiões detêm o seu monopólio. O espiritual e até o místico possuem uma básica biológica. Por isso estão presentes em todos os seres humanos. Negados ou afirmados, eles sempre estão lá porque pertencem à nossa constituição enquanto humanos. É o que os cientistas chamaram de “ponto Deus” no cérebro.
Ele é algo permanente em nós e está sempre atuando quando buscamos o sentido da vida, quando temos uma experiência de amor, de solidariedade, de profunda paz e de comunhão com todas as coisas. É ele que nos faz entrar em diálogo orante com Deus.
As religiões do mundo são formas de expressar por ritos, comportamentos e doutrinas este “ponto Deus”. Todas têm este “algo” em comum. Mas as expressões variam conforme as culturas. Tomar a sério o “ponto Deus” no cérebro nos permite ver a unidade de fundo de todas as religiões, além de suas legítimas diferenças.
Tal constatação nos permite valorar toda essa onda de misticismo e de religiosidade que perpassa nossa cultura e inunda os meios de comunicação de massa, como as rádios e os canais de televisão. Ela nos oferece instrumentos para espiritualizarmos nossas vidas para além daquilo que as religiões e igrejas constituídas possam nos oferecer. Vamos oferecer os principais dados dessa nova visão científica.
É notório que uma frente avançada das ciências hoje é o estudo do cérebro e de suas múltiplas inteligências. Alcançaram-se resultados relevantes para entendermos o fenômeno referido anteriormente.
Nesses estudos enfatizam-se três tipos de inteligência. A primeira é a inteligência intelectual, o famoso QI (Quociente de inteligência) ao qual se deu tanta importância durante todo o século XX. É a inteligência analítica pela qual elaboramos conceitos e fazemos ciência. Por ela organizamos o mundo, os Estados, as empresas, todo tipo de burocracias e solucionamos problemas objetivos.
A segunda é a inteligência emocional, popularizada especialmente pelo professor de Harvard, o psicólogo e neurocientista David Goleman, com seu conhecido livro A Inteligência emocional (QE = Quociente emocional). Empiricamente, ele mostrou o que era convicção de toda uma tradição de pensadores, desde Platão, passando por Santo Agostinho e São Boaventura e culminando em Freud: a estrutura de base do ser humano não é a razão (logos), mas, sim, a emoção (pathos). Somos, fundamentalmente, seres de paixão, empatia, compaixão e amorosidade. Só quando combinamos QI com QE é que nos mobilizamos de fato.
A terceira é a inteligência espiritual. Seu reconhecimento, com características científicas, deriva de pesquisas muito recentes, a partir de 1990, feitas por neurologistas, neuropsicólogos, neurolinguistas e técnicos em magnetoencefalografia (que estudam os campos magnéticos e elétricos do cérebro). Segundo esses cientistas, existe em nós, empiricamente verificável, outro tipo de inteligência − a espiritual (QEs = Quociente espiritual). Por meio dela captamos os contextos maiores de nossa vida, criativamente rompemos limites, percebemos unidades e nos sentimos inseridos no Todo, tornando-nos sensíveis a valores, a questões do sentido da vida e a temas ligados a Deus e à transcendência.
Essa consciência possui sua base biológica nos neurônios. Constatou-se que todos os neurônios implicados em uma experiência consciente oscilam coerentemente a 40 hertz. Quando os lobos temporais do cérebro são submetidos a uma excitação que aumenta essa frequência, eles desencadeiam uma experiência espiritual de exaltação, de imensa alegria e de beatitude como quem está diante de uma Presença.
Observou-se que sempre que se abordam temas religiosos, Deus ou valores que concernem o sentido profundo das coisas, não superficialmente, mas em um envolvimento sincero e profundo, produz-se excitação que vai muito além do normais 40 hertz.
Por essa razão, neurobiólogos como Persinger e Ramachandran e a física quântica Danah Zohar batizaram essa região dos lobos temporais de o “ponto Deus” (veja o livro de Danah Zohar e Ian Marshall, QS: inteligência espiritual, 2a edição: Rio de Janeiro, Editora Record, 2003). Outros preferem falar da “mente mística” (mystical mind). A existência deste “ponto Deus” representa uma vantagem evolutiva de nossa espécie “homo sapiens”. Só ela seria depositária dessa qualidade neuronal pela qual captamos a presença de Deus no Universo.
Não significa que Deus esteja apenas nesse ponto dos neurônios. Deus empapa toda a realidade. Mas o “ponto Deus” é um órgão interno pelo qual percebemos a presença de Deus em todas as coisas e em nós. Assim como a evolução caminhou de tal forma a produzir em nós os vários órgãos − os olhos para ver, o olfato para captar os odores, os ouvidos para ouvir, o tato para sentir, a boca para comer e falar −, e com todos eles internalizarmos o universo para dentro de nós, ela também criou essa capacidade interna que nos abre o acesso a Deus.
Se assim é, podemos dizer, em termos do processo evolucionário: o Universo evoluiu, em bilhões de anos, até produzir no cérebro humano o instrumento pelo qual é possível captar a Presença de Deus que sempre estava no Universo, embora não percebível por faltar uma consciência adequada. A espiritualidade pertence ao humano e não é monopólio das religiões. Antes, as religiões são traduções históricas do “ponto Deus”.
Mas não basta constatar o “ponto Deus” no cérebro. Como todas as coisas vivas, deve ser alimentado e continuamente ativado. Isso se faz, antes de tudo, voltando-nos para dentro de nós mesmos e dialogando com o nosso Centro e com o Profundo que existe em nós. Esse diálogo leva a auscultar mensagens que a consciência envia – mensagens de solidariedade, de amor, de compreensão, de perdão e de cuidado com todas as coisas. Essa atitude gera serenidade e paz e confere sentido à existência. Ela é uma irradiação do “ponto Deus” ativado. Nossa cultura não facilita esse mergulho ao interior. Nela tudo é dirigido para fora, ocupando a mente e distraindo-a para que não se encontre com ela mesma. Em seguida, é da natureza do “ponto Deus” nos abrir a dimensões cada vez mais amplas, nos fazer ver os contextos maiores de nossa vida e nos permitir descobrir o fio condutor que liga e religa todas as coisas. Só assim elas fazem sentido e não constituem apenas uma sequência aleatória de sentimentos e sensações superficiais.
O “ponto Deus” nos ajuda a alimentar a relutância em fazer o mal e nos reforça na realização do bem e de todo tipo de valores, especialmente aqueles que implicam abertura ao outro, à proteção da vida – particularmente daquela mais vulnerável –, à compaixão, ao perdão e ao amor incondicional.
Por fim, devemos incorporar uma atitude orante e meditativa. Isso significa: importa colocarmo-nos diante de Deus, não como quem está à borda de um abismo aterrador, mas na companhia de um pai ou de uma mãe de bondade, sentindo-nos aconchegados como uma criança que se percebe na palma da mão de Deus. Então podemos falar-lhe com confiança, agradecê-lo por tantos dons, suplicar-lhe luz para nossas buscas ou simplesmente entregarmo-nos a Ele sem qualquer palavra, em um silêncio pleno de sua presença.
Permito-me dizer que eu mesmo desenvolvi um caminho, baseado na tradição dos cristãos do século II do norte do Egito, que combina também com os métodos do zen-budismo. Chamei-o de “caminho da simplicidade”. Trata-se de abrir-se à Luz que vem do Alto. Ela incide sobre nossa cabeça, penetra todo nosso corpo, ativando os pontos de concentração de energia que os orientais chamam de “chacras”, perpassa por cada poro de nosso ser, transfigurando, aliviando, curando e abrindo-nos à Luz Beatíssima que é o Espírito Santo, como o chama o hino litúrgico de Pentecostes (veja o livro de minha autoria, Meditação da luz: o caminho da simplicidade, da Editora Vozes, São Paulo, 2009).
O efeito dessa ativação do “ponto Deus” é uma paz profunda que só pode vir de Deus, pois nos integra conosco mesmo, nos sintoniza com o nosso coração, nos abre aos outros e ao próprio Deus. Hoje, mais do que nunca, precisamos dessa espiri-tualidade para fazermos uma travessia feliz em um tempo tão carregado de contradições, conflitos e ameaças à vida humana e à Terra, nossa Casa Comum.
Leonardo Boff
Petrópolis, RJ, Brasil