O que dizem os povos primeiros ao povo brasileiro

 

Sonia Guajajara

Os povos indígenas do Brasil são povos originários, que, desde a colonização,  vem resistindo a opressão, racismo e ao genocídio. Nossos territórios tradicionais são constantemente ameaçados e invadidos, colocando a nossa existência em risco. Para os povos indígenas, os territórios tradicionais são espaços de construção e vivência cultural, em que desenvolvem suas formas específicas de organização, práticas culturais e de uso, ocupação e gestão territorial.

Desde a Constituição Federal de 1988, os direitos territoriais no Brasil estão formalmente assegurados na Constituição de 1988 como direitos originários. Reconheceu ainda a Constituição aos povos indígenas o direito à organização social, aos costumes e tradições, bem como o usufruto exclusivo do solo, dos rios e dos lagos neles existentes.

A Norma Constitucional assegurou autonomia aos indígenas, na medida em que não está apenas garantindo o respeito e a proteção aos direitos culturais, mais do que isso, declarou o direito de decidir os seus caminhos para o futuro, os processos de desenvolvimento que desejam seguir, como parte, também, do direito à organização social própria. Com isso, estabelece-se uma ruptura com o paradigma da modernidade colonial de tutela e de assimilação recorrente na legislação e na prática do Estado brasileiro.

O reconhecimento Constitucional dos povos indígenas não implicou, necessariamente, a sua implementação e nem o fim dos ataques aos seus territórios, recursos naturais e do preconceito. Em geral, somente mediante conflito e resistência os direitos dos povos indígenas são assegurados. Portanto, mesmo com todo um conjunto normativo, ainda há uma reprodução das práticas e concepções coloniais de poder. O fundamento desta concepção é a manutenção da situação de submissão e exploração, imposta com a colonização, que constituiu a ideia de que um pequeno grupo como dominador de todos os outros.

A economia capitalista compreende os territórios e a natureza a partir de uma postura utilitarista, que tem como finalidade a máxima extração e uso desses recursos com o máximo aproveitamento, apesar dos amplos sinais de esgotamento.

Os povos indígenas percebem essa relação e resistem. A resistência tem como finalidade primeira de garantir o direito de ser respeitado enquanto indígena, em suas formas de organização, cultura, território e suas relações com a natureza. Isto não representa nenhuma forma de atraso, como se constitui no imaginário social. É a luta pra manter um modo de vida que é diferente dos demais. Esta concepção, que com a promulgação da Constituição de 1988 deveria ter sido abandonada, permanece se reproduzindo e produzindo efeitos, retratando a permanência do pensamento preconceituoso e racista.

No Brasil contemporâneo estas ideias retornam como um debate fortalecido e que tem se concretizado em medidas legislativas e executivas contra os povos indígenas, através do retorno da ideia de integração dos povos indígenas, de desenvolvimento dos territórios e da tática do confronto com os povos indígenas.

O principal foco dos ataques aos direitos dos povos indígenas são os territórios tradicionais. As demarcações das terras indígenas estão paralisadas. O atual Presidente da República afirmou que não demarcaria nenhuma terra indígena em seu governo.[1] Para tal, transferiu a demarcação das terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) retirando a responsabilidade da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A decisão foi prevista na reforma ministerial, através da Medida Provisória 870/2019. O Congresso Nacional modificou a Medida Provisória em diversos pontos, entre eles, retornou para a FUNAI a atribuição de demarcar os territórios indígenas. Contudo, o Presidente publicou uma nova Medida Provisória, de número 886/2019, retomando a demarcação para o MAPA, contrariando a decisão do Congresso Nacional e incorrendo em uma inconstitucionalidade, visto que é proibida a reedição de medida provisória na mesma legislatura que tenha sido rejeitada. Para além de um debate jurídico, as medidas legislativas do governo demonstram uma intensão a qualquer custo de impedir a demarcação de terras indígenas.

Ao mesmo tempo, no Congresso Nacional tramita aceleradamente projetos de lei que buscam flexibilizar o licenciamento ambiental, com a finalidade de diminuir ou, até mesmo, impedir a participação dos povos indígenas e também de levar projetos ditos de desenvolvimento para os territórios tradicionais, com isso abrindo os territórios tradicionais para exploração.

O que está em disputa neste debate é a visão de território e da natureza. Há duas concepções, que também são duas estratégias, em confronto. De um lado o capital e o Estado articulados que negam outras formas de ocupação do território e de uso dos recursos naturais diferentes da racionalidade que promovem e os mobilizam, que é uma visão pensando na exploração, destruição, lucro e no dinheiro. Do outro lado estão os povos indígenas com as suas concepções, cosmovisões e relações intersubjetivas com a natureza e com o território, cuja sobrevivência e reprodução dependem da manutenção da natureza para existir.

São os territórios indígenas que possuem a resposta para as mudanças climáticas e, consequentemente, para a vida em risco no planeta. O modelo depredador e explorador em curso do capital, de consumo ilimitado, acaba com a capacidade de reposição e de renovação da natureza tanto para a atual geração, como também da parte que corresponderia das outras gerações.

Para os povos indígenas a concepção de desenvolvimento apresenta-se contrário ao lucro e a exploração da natureza e das pessoas, como pensa o atual governo e o capital. É uma forma de desagregar as pessoas. Des-envolvimento para os povos indígenas do Brasil, em especial a partir da ditadura militar, só significou sangue, extermínio de povos, expulsão dos territórios e exploração da natureza.

A etimologia da palavra “Desenvolvimento” aponta para um processo de exclusão dos povos indígenas em suas ideias e atividades. Seu prefixo DES indica um conceito negativo. Des-envolvimento é não envolver-se. Em vez de envolver mais as pessoas, está espalhando, está desagregando, está desunindo. O des-envolvimento historicamente desune os povos indígenas, desune as pessoas, desune as causas, separa. Isto porque a ideia de desenvolver está relacionada com o sentido econômico, de crescimento, de aumentar o dinheiro, o lucro.

Para os povos indígenas, o desenvolvimento teria que acontecer de uma forma que envolvesse as pessoas, que considerasse o modo de vida, que respeitasse o jeito das pessoas, a cultura, a questão social, cultural, política dos povos. E a forma como o desenvolvimento opera acaba matando as culturas, o modo de vida, a alimentação, tudo. Esta ideia de desenvolvimento ligada a exploração, transforma todas as pessoas como se existisse um só pensamento, independente da cultura e forma de organização social. Para os povos indígenas, desenvolvimento é uma forma de destruição das nossas organizações sociais e culturais e de exploração dos nossos territórios. Esse desenvolvimento só isola e exclui.

Em resistência, opondo-se a esse pensamento, para garantir os territórios, a natureza, as suas identidades, os povos indígenas travam processos de resistência, com lutas e mobilizações sociais, que, muitas vezes, resultam em criminalização dos movimentos e a execução de lideranças indígenas.

Ainda assim, nós povos indígenas seguiremos em luta e convocamos a esquerda a se unificar na luta pelos bens comuns e dos direitos sociais. Sem reproduzir as disputas de poder hegemônico, demonstrando compromisso com a inversão da lógica de poder colocada e de assumir verdadeiramente as pautas dos povos indígenas, das mulheres, dos quilombolas, das comunidades tradicionais, das negras/negros, dos LGBT, dos trabalhadores do campo e da cidade, rompendo, assim, com as matrizes coloniais de poder.

 

 

[1] Disponível em: < https://veja.abril.com.br/politica/quem-demarca-terra-indigena-sou-eu-nao-e-ministro-diz-bolsonaro/>.