O que expressam as religiões e não morre com elas

O que expressam as religiões e não morre com elas

Marta Granés


É um fato aceito que em todas as épocas os povos tiveram uma religião, e que, ao longo de sua história, eles a mudaram não somente por imposição de algum conquistador, mas por sua própria necessidade de se adaptar a novas formas de vida. É um fenômeno comum nas coletividades humanas.

Antropólogos e historiadores da religião estão de acordo em que podemos detectar, em todos os povos, religiões pertencentes a três tipos de culturas: a das sociedades de caçadores-recolhedores, a dos agricultores e a dos criadores de gado.

A primeira pertence à época em que se vivia da caça, aproximadamente a partir dos hominídeos superiores até quando, pela diminuição da caça, foi preciso recorrer à agricultura de subsistência, o que em alguns lugares aconteceu precocemente, a partir de 5.000 a.C., e durou até a época atual.

Em ambas as sociedades a religião era transmitida em relatos mitológicos cuja função era dupla: por um lado, explicavam como era o mundo e como os humanos deviam agir nele (essa era a função principal do mito: programar a coletividade); por outro, tais relatos serviam também para dar forma ao que estava além do mundo dos homens. Os mitos permitiam poder planejar, de maneira adequada, a sobrevivência do grupo – tanto o humano quanto o sagrado –; eles davam às mentes humanas uma visão de acordo com sua forma de viver. Os mitos a dirigiam e eram o padrão para a construção da sociedade. Por exemplo, os mitos e os rituais dos caçadores serviam para que eles pudessem ver o mundo de maneira adequada à caça e para, assim, serem mais eficazes na sobrevivência coletiva. Essa mitologia foi sendo forjada pouco a pouco, por tentativas e erros, até chegar ao formato definitivo. O mesmo acontece comos povos agrícolas.

Acreditava-se que essa mitologia que dava forma ao mundo humano e ao que escapava das dimensões humanas, o sagrado, teria vindo do céu, dos antepassados, dos deuses. Com isso surgiram os mitos, e os rituais ligados a eles (a religião), que são a lenta criação dos povos ao longo de milhares de anos. E daí tornaram-se intocáveis, fixos e, portanto, eternos. Isso foi possível porque os povos não tinham consciência do longo processo de sua criação. Nossa situação é diferente; agora sabemos que as mitologias são produtos culturais para facilitar a vida das sociedades e também para orientar na busca do sagrado.

Os estudiosos estão de acordo em que a mudança de religião ao passar da vida da caça para a da agricultura supôs uma grande ruptura na maneira de ver o mundo e o sagrado. A mudança de uma sociedade para outra foi relativamente rápida, ao passo que a da mitologia exigiu mais tempo. Viver da caça implicava uma forma de ver o mundo, senti-lo e agir nele. O mundo dos caçadores tinha sua forma de organização, de família, de educação, tinha um corpo simbólico próprio adequado à sua cultura, tinha sua interpretação do sagrado, seus rituais. Tudo isso explicava seu mundo e a relação dos indivíduos com ele. E, de repente, deixa de ser significativo, não adequado à nova realidade ligada à agricultura.

Abandonar a caça para se dedicar ao cultivo agrícola supôs o desmoronamento de todo um mundo. Obrigou a mudanças drásticas nas relações inter-humanas, na maneira de enxergar a realidade, que afetaram também o modo de interpretar o sagrado e consequentemente os rituais. Não é difícil imaginar o grande desconcerto daqueles povos, nossos antepassados, ao se darem conta de que a cultura herdada, os valores de seus ancestrais, o que fora transmitido por eles, incluindo a religião, deixava de ter significado, de ser guia de suas ocupações, de sua vida.

Façamos uma pequena descrição da mudança vivida a respeito do sagrado nessa passagem. Na sociedade de caçadores, a vida era matar e comer os animais caçados. Se deles dependia a sobrevivência, isso queria dizer que a vida estava neles, ou seja, eram sagrados. Tudo em seu mundo tinha relação com a sobrevivência do grupo, assim, toda a realidade era igualmente sagrada. Isso ficava confirmado pela falta de hierarquia dentro da organização grupal.

Mas quando nossos antepassados passaram a se alimentar de produtos cultivados no campo, a organização coletiva deixou de ser familiar; o mando concentrou-se em uma pessoa, enquanto os demais somente deviam obedecer. Como dizemos, os mitos eram configurados pela forma de vida do grupo; por isso o sagrado nos povos agrícolas também teve que se ver como concentrado em uma entidade, em uma espécie de superindivíduo. Sua religião mudou. Deixaram de ver o sagrado, embebendo toda a realidade ao seu redor, para situá-lo distante do mundo: no céu.

A mudança a respeito do sagrado fora total. Tinha-se deslocado para o céu e de lá passaria a guiar o terrestre. O sagrado era agora alheio, afastado, estranho aos humanos e, por causa disso, passaria a ser necessária, pela primeira vez na história, a ajuda de intermediários para interpretar a vontade divina. As sociedades agrícolas se organizaram hierarquicamente como em uma pirâmide de poder. Em seu vértice superior se situava o rei, cujo poder vinha diretamente do céu, e através dele iria se expandindo por toda a pirâmide hierárquica. Todos participariam do sagrado mediante a obediência a seus superiores hierárquicos. Os rituais que acompanhavam a nova mitologia tiveram também que mudar para se adequar a ela.

Alguns povos, terminada a época da caça, passaram a viver do cuidado dos rebanhos. Para eles também houve transformação na maneira de ver a realidade, de se coordenar entre os membros, e de conceber o sagrado. Suas sociedades se estruturavam em tribos, pelo que, para eles, o sagrado tinha se conectado com os antepassados e profetas. Como sua sobrevivência dependia da manutenção e da reprodução do gado, viam a morte como uma ameaça. A vida estava em confronto com a morte. Essa concepção refletiu-se em sua mitologia, o sagrado. O superior foi interpretado como dividido em dois: uma divindade boa, que propiciava a vida, e outra má, que ocasionava a morte; as duas sempre em luta, em um enfrentamento que não ocorria no Céu, mas na Terra. Aqui também podemos imaginar que se supôs que o sagrado tinha passado, em vez de estar em tudo, como nos casos dos caçadores, a se encarnar na luta de dois princípios opostos no seio da história.

Os estudos nos levam a descobrir que todas as maneiras de interpretar o sagrado são condicionadas às formas humanas de sobrevivência. Essas moldam por completo a visão da realidade. A religião não escapa dessa condição. As religiões, como conjunto de mitologia e rituais, são as maneiras de interpretar o sagrado nas sociedades pré-industriais. As religiões estão, pois, ligadas a algumas determinadas formas de viver pré-industriais e, se essas mudarem, farão mudar também as formas religiosas.

Olhando a nossa história em conjunto, podemos constatar que a religião tem sido uma constante, ainda que suas formas tenham variado. Isso nos leva a poder dizer que, nos humanos, se dá a capacidade de suspeitar de que a realidade que nos rodeia e também as pessoas remetem a “algo” mais além delas próprias. Nossos antepassados interpretaram esse “algo” segundo a cultura que lhe coube viver. As formas que as diversas culturas lhes deram são diferentes, mas o que há de comum em todas elas manifesta a capacidade propriamente humana de poder ter notícia dessa dimensão, situada mais além de toda a forma cultural, mas modelada por ela.

Tudo isso nos leva a concluir que se as mudanças que nos coube viver são próprias de uma mudança de cultura, então causará uma transformação da forma de viver, de ver a realidade e também de interpretar o sagrado. Como aos nossos parentes longínquos, esta nova situação cultural vai exigir de nós uma transformação dolorosa e incômoda, visto que é inevitável. Mas hoje temos uma vantagem sobre eles: a de saber que somos nós mesmos que devemos resolver o vazio no qual nos está deixando o fim da cultura pré-industrial; ninguém de fora virá nos socorrer. Agora sabemos que as religiões são uma construção humana condicionada pela cultura de um momento histórico, e que, por isso, quando há uma mudança de cultura grave, se dará uma mudança na religião.

As formas religiosas do passado eram ligadas a mitos e ritos, e hoje esses mitos estão se tornando opacos, lidos a partir de nossa cultura cada vez menos agrícola, menos ganhadora à maneira pré-industrial, menos hierárquica, menos autoritária. Não é que nós tenhamos nos tornado piores que nossos antepassados, é que nossa linguagem e a das mitologias pertencem a culturas diferentes. Mas deveremos ter a precaução de não descuidar hoje daquela “dimensão espiritual” que ultrapassa toda a expressão cultural humana, aquilo que nossos antepassados chamaram de Deus. Se caso nos esquecermos disso, então ficaremos presos na pura animalidade.

 

Marta Granés

Centro de Estudio de las Tradiciones Religiosas, cetr.net,

Barcelona, Cataluña, Espanha