O SOPRO DA RUAH GERA RESISTÊNCIAS

 

Carlos Mendoza Álvarez

Construindo espiritualidades e teologias descoloniais pluralistas

A Ruah soprava sobre o caos

“A terra era caos, confusão e as trevas cobriam o abismo,

mas o Espírito de Deus (Ruah) se movia sobre as águas”

Gênesis 1,2

Em tempos de incerteza em escala global devido às alterações climáticas, a crescente injustiça do capitalismo e a violência das máfias criminosas, persistem luzes de dignidade e esperança que mantêm acesas nas pessoas e nas comunidades a resistência à violência sistêmica que aflige a humanidade e a nossa casa comum.

Diante da propagação do desânimo, do medo e da confrontação promovida por muitos líderes políticos, sociais e religiosos no mundo, é crucial regressar hoje às fontes de vida onde a Ruah divina continua a esvoaçar como desde o princípio do mundo. Pensemos nos oásis no meio do deserto sobre os quais esvoaça uma pomba: são lugares de vida que permitem aos nômades sobreviver no seu percurso como povos em movimento. Onde estão localizados esses oásis hoje e quais criaturas do cosmos e povos em movimento indicam a localização desses oásis a flutuar sobre essas fontes?

A mais de meio século, Frantz Fanon, pensador caribenho da ilha da Martinica descendente do que hoje chamamos de "povos afrodiaspóricos", ou seja, povos africanos obrigados há cinco séculos pelo sistema de escravidão colonial moderna à mobilidade forçada da África rumo a Abya Yala - nos ajudou a abrir nossos olhos e nossos corações para "os malditos da terra", uma forte expressão para tornar visíveis aos povos submetidos pelo moderno poder racista e colonial. Desde então, o pensamento descolonial emergiu fortemente das múltiplas resistências de indivíduos e comunidades frente à violência que nos ameaça por todos os lados. Este pensamento quer estar a serviço de corpos e territórios negados, mas que ressurgem com digna cólera através da resistência, gerando assim novos modos de vida, organização comunitária, espiritualidade libertadora e, assim, criando uma verdadeira re-existência.

Graças a essa abordagem descolonial, hoje sabemos que o mais importante para viver com dignidade em meio à violência sistêmica é reconhecer o poder que surge das próprias vítimas: aquelas que dizem basta ao patriarcado que assassina mulheres por serem mulheres, que enfrentam o capitalismo que invade territórios para os devastar, que detêm no seu coração e na sua imaginação o colonialismo externo que controla a economia e as redes digitais, assim como o colonialismo interno que se apodera do imaginário dos povos. Trata-se de aprender com os corpos que se reinventam, com os territórios que resistem à invasão e destruição do capitalismo extrativista de forma resiliente, com os povos que inventam novas formas de governo e espiritualidade.

Nestes tempos de devastação da terra e de violência contra os povos, os oásis encontram-se precisamente na resiliência, resistência e re-existência das próprias vítimas que deixam de ser vítimas, se reconciliando, cuidando umas das outras, tecendo redes de solidariedade.

Ai a Ruah divina palpita desde as origens do cosmos porque é expressão do ser profundo de Deus de ser fonte de vida.

A presença geradora da Ruah divina

“O vento sopra onde quer, e ouve a sua voz,

mas não sabe de onde vem nem para onde vai.

Assim acontece com quem nasceu da Ruah.”
João 3,8

Graças às diversas espiritualidades dos povos ancestrais e ao legado judaico e cristão de fé no amor criador de Deus, sabemos que somos sustentados pela força divina que nos envolve, nos fortalece e nos mantém na resistência diante das múltiplas violências de nossos tempos.

Mas não é uma experiência solitária e isolada, como um narcótico que nos tira artificialmente do mundo do sofrimento, do desespero e da morte. Pelo contrário, a inspiração da Ruah divina é um sopro de vida que habita em nós como o ar de vida que inalamos profundamente em nossos pulmões e, ao mesmo tempo, uma força de comunhão que nos conecta com os outr@s quando compartilhamos tanto sua inspiração como sua expiração, inspirando e expirando vida.

Nesse movimento vital de inalar-expirar, está em jogo o ritmo da divina Ruah, que nos acompanha a viver com dignidade e esperança em tempos de horror. Acima de tudo, nas situações em que é preciso enfrentar a violência, conseguimos perceber essa força transformadora que nos envolve. Aprendi isso com as mães das pessoas desaparecidas no México que, apesar do imenso vazio que sofrem pela ausência de sua filha, filho, marido ou irmão desaparecido pelas máfias criminosas, encontram força quando se juntam a outras mães para buscar a vida, nas prisões, nas casas de tráfico humano ou em sepulturas clandestinas. Então elas começam a respirar novamente um ar de vida e dignidade. Acompanham-se na sua dor e, quando conseguem identificar uma pessoa em vida ou nos seus restos mortais, celebram esse presente como uma “promessa cumprida”. Depois virá a longa tarefa da memória, da justiça e talvez do perdão. Mas, por enquanto, nesse "momento que marca o tempo" da fatalidade, elas são como a pomba que esvoaça sobre o oásis: transformaram um lugar de morte em um lugar de vida.

Caminhar com os outr@s pelos desertos de hoje, em busca dessas fontes, é uma forma de re-experimentar a existência para transformar a violência que tem faces de machismo, classismo, racismo e ódio ao diferente. Acompanhar-nos neste caminho para perceber os sinais da divina Ruah esvoaçando sobre o velho e o novo caos é o caminho da espiritualidade em chave descolonial.

Para além das religiões e do mercado, para além dos medos e ressentimentos paralisantes que envenenam o corpo e a alma, a espiritualidade como resistência e re-existência é hoje caminho de libertação de corpos e territórios oprimidos no caminho da libertação e da plenitude graças àqueles que reinventam o mundo a partir de suas próprias feridas, conectando-se com os outr@s no caminho da Vida.

A espiritualidade descolonial é dom e tarefa. Dom porque a recebemos daqueles que resistem à violência, tirando o poder de seus carrascos. Tarefa porque é um caminho partilhado com quem transformou a sua dor em dignidade, esperança e novos modos de vida.