Oração judaica feminina

Oração judaica feminina

Um livro de oração muda a linguagem para incluir mulheres e gays

Antônio Pita


Quando os israelitas cruzaram o Mar Vermelho fugindo do exército egípcio cantaram um poema a Deus. Moisés o recitou aos homens para que eles repetissem, enquanto sua irmã Miriam fez o mesmo com as mulheres. Assim conta o Êxodo. No entanto, quando se recria o cântico, na oração judaica, só Moisés é citado.

Corrigir este e outros elementos da linguagem litúrgica judaica que discriminam as mulheres, gays, mães solteiras ou membros de outras religiões, é precisamente o objetivo de um novo livro de orações diárias (Sidur, em hebraico), publicado em fevereiro de 2016 pelo Movimento Judeu Conservador dos Estados Unidos. Os conservadores, também chamados tradicionais, são 18% dos mais de 5 milhões de judeus do país (o segundo do mundo onde a comunidade é mais numerosa, depois de Israel), e representam, desde sua origem no século XIX, um ponto médio entre os demais ramos: o reformista, marcado por sua abertura e o ortodoxo, apegado à tradição.

“Nossa sensação é que muitas pessoas necessitavam de orações que lhes fizessem sentir bem-vindos à sinagoga. Algumas orações são problemáticas, dizem coisas nas quais não acreditamos e temos que encontrar a forma de abordá-las com uma voz contemporânea”, explica, de Massachusetts, Edward Feld, o rabino que coordenou a edição da obra intitulada Sidur Lev Shalem, na qual, junto ao original, em hebreu e à tradução em inglês, um comentário explica o significado e a origem de cada parte da liturgia. Um sidur contém as preces necessárias para as três orações diárias que prescreve o judaísmo, como as específicas do dia sagrado, o sabbat e outras comemorações. O sidur tradicional está escrito no masculino. Diferentemente do castelhano, em hebreu o verbo varia se o sujeito é homem ou mulher... Na nova edição estão incluídas as duas opções para que as mulheres se sintam parte na oração. Nos fragmentos nos quais se veneram os patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, agora se mencionam as matriarcas Sara, Lia e Raquel. E, na medida do possível, opta-se por palavras neutras. Deus, por exemplo, deixa de ser “Rei” e às vezes é nomeado na segunda pessoa (“Tu”) para não usar a fórmula “Ele”. “A Bíblia incluiu as mulheres e a Idade Média as tirou. Nós voltamos a incluí-las”, afirma o rabino.

O mesmo sucede com os casais de homossexuais e lésbicas. Agora podem recitar as orações que acompanham as principais fases da vida sem pronunciar pronomes que incomodam. “Somos claramente conscientes de que as famílias são hoje muito variadas. A linguagem está muito politizada e queremos que quem a escute não a perceba como algo que deixa de lado, senão como algo que possa rezar”, resume Feld. Em 2012, o movimento conservador concluiu que os casais entre pessoas do mesmo sexo tem “o mesmo sentido de santidade e alegria que se expressa nos casais heterossexuais”, e estabeleceu rituais para os mesmos. Os reformistas já estavam à frente.

O livro não só abraça a linguagem inclusiva e as novas realidades sociais, mas trata de ser uma porta aberta para as famílias nas quais só um dos cônjuges é judeu. Os casamentos mistos são 58% dos que celebram os judeus nos Estados Unidos e suscitam um permanente debate no seio da comunidade: como manter uma vivência judaica e transmiti-la aos filhos quando se convive com uma pessoa de religião diferente? Uma das formas é flexibilizar os ritos e apagar a marca da linha entre judeus e não judeus que vertebra as orações originais. No novo sidur, por exemplo, foi mudada uma frase: o sabbat já não é um “presente para os judeus”. É um “presente para todos”.

 

Antônio Pita
El País, Madri, Espanha