Os conflitos religiosos do mundo de hoje

Os conflitos religiosos do mundo de hoje

José Oscar BEOZZO


1. Mapeando os conflitos

O ataque às torres de Nova Iorque, em 11 de se-tem-bro de 2001, seguido da guerra no Afeganistão, criou rapidamente um clima, onde se passou a identificar uma determinada religião, o islamismo, com o terrorismo.

O antigo “império do mal”, expressão com que o presidente norte-americano Ronald Reagan estigmatizava a URSS,foi substituído por George W. Bush, pela ex-pre-ssão “eixo do mal”, colocando, no mesmo saco, vários países islâmicos, Iraque, Irã, Síria, Líbia, mas também um país comunista, Coréia do Norte.

Na convocação internacional para se lutar contra o terrorismo, o presidente Bush falou de uma “cruzada” do ocidente cristão ameaçado pelo ativismo muçulmano.

Na ânsia de compreenderem o que está acontecendo, muitas pessoas têm recorrido à teoria de Samuel Hun-tington de que os conflitos deste século XXI serão conflitos entre civilizações. A teoria que foi logo simplificada para “guerra de religiões”.

2. Guerras de religião?

Estes acontecimentos ressuscitaram a inquietante pergunta acerca da relação entre violência, guerras e religiões. Seriam elas fator de paz ou contribuiriam para agravar tensões e conflitos, com um componente explosivo, pois falam em nome de Deus e trabalham com a noção de absoluto inclusive ético?

Este clichê, “guerra de religiões”, passou então a ser usado como chave de leitura para muitos outros confli-tos contemporâneos.

O da Irlanda do Norte, por exemplo, em que distritos de maioria católica desejam separar-se dos outros de maioria protestante e juntar-se à República da Irlanda, vem sendo descrito como uma guerra entre “protestantes e católicos”.

O choque “palestino-israelense”, por conta das terras palestinas ocupadas pelo Estado de Israel, a partir de 1948 e sobretudo depois da guerra dos seis dias, em junho de 1967; por conta de 4,5 milhões de refugiados palestinos, com direito a retornarem ao território de onde foram expulsos; por conta das quase trezentas colônias judaicas implantadas ilegalmente nas escassas terras palestinas; por conta da difícil repartição da água, bem essencial, escasso e mais caro do que o petróleo na região; por conta do impasse sobre Jerusalém, cidade santa para judeus, cristãos e muçulmanos; por conta enfim da terrível violência mútua, onde o terrorismo virou uma arma contra civis israelenses, reprimido, por sua vez, com inaudita violência, num verdadeiro terrorismo de estado, por parte de Israel, tudo isso, é simpli-ficadamente descrito como um embate entre “judeus” e “muçulmanos”.

Na atual guerra de desgaste entre Índia e Paquistão, pela posse do Cashemira, região de maioria muçulmana mas sob administração da Índia, numa parte; do Pa-quis-tão noutra, e da China, numa terceira, os oponentes são descritos como “hindus” de um lado e “muçulmanos” do outro.

Nos sangrentos conflitos na ex-Iuguslávia, e na “limpeza étnica” ali praticada uns contra os outros, com o fito de criar territórios etnicamente homogêneos, os sérvios eram, sem mais, identificados como “ortodoxos”; os croatas, como “católicos”; os kosovares e a maioria dos bósnios, como “muçulmanos”.

Os conflitos no Sri Lanka, onde a minoria Tamil luta por autonomia na região norte do país, vêm sendo qualificados como choque entre “budistas” e “hindus”.

Na Indonésia, de modo particular, no Timor Leste, as lutas pela independência da ex-colônia portuguesa apareciam como confronto entre “muçulmanos” e “católicos”.

Do mesmo modo, no Sudão, a guerra que move o governo de Khartum contra as populações do sul do país, vem sendo caracterizada como confronto entre “muçul-manos” e “cristãos”.

Noutros lugares, como na Nigéria, onde oito pro-vín-cias do norte acabam de adotar a “sharia” ou seja, a lei corânica como base da legislação civil penal, explodiram conflitos entre a maioria muçulmana e as minorias cristãs que se sentem ameaçadas pelo novo quadro jurídico. Estes e outros embates na Congo, Rwanda, Burundi, vem sendo descritos, ora como conflitos étnicos, ora como conflitos religiosos

3. Como julgar criticamente os conflitos?

No geral, as causas destes confrontos são complexas, envolvendo jogos estratégicos na geopolítica, veladas disputas entre antigas potências coloniais, disputa entre grandes companhias pelo acesso a diamantes, petróleo, gás, urânio ou outros materiais estratégicos, além de razões históricas, econômicas, políticas e sociais, raciais e, cada vez mais, culturais. É inegável que muitos destes conflitos vêm atravessados igualmente por uma vertente religiosa, acionada ao sabor dos interesses em jogo.

4. Bem-aventurados os construtores da Paz

No conturbado cenário das últimas décadas, há um claro reconhecimento, por parte da sociedade internacional, de que homens e mulheres de fé, pertencentes a diferentes credos e comunidades religiosas, vêm dando uma importante contribuição para os esforços em favor da justiça e da paz mundiais.

Em 1930, o arcebispo luterano de Upsala na Suécia, Nathan Söderblom, primaz da igreja local recebeu o prêmio Nobel da Paz por suas iniciativas em favor da superação dos conflitos internacionais.

Em 1952, foi a vez de o missionário luterano, teólogo, músico e médico da Alsácia, Albert Schweitzer receber o Nobel da Paz, por incrementar a fraternidade entre os povos, a partir do seu hospital para leprosos no Gabão.

A corajosa atuação não-violenta do Pastor batista, Martin Luther King (1929-1968), em favor dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, valeu-lhe o Nobel da Paz em 1964.

Nas últimas décadas do século passado, ao mesmo tempo em que se multiplicavam os conflitos e guerras no terceiro mundo, surgiram pessoas e organizações que se tornaram construtores de paz, sob inspiração de sua fé religiosa.

Em 1979, pela primeira vez, uma mulher recebeu o Nobel da Paz: Madre Tereza de Calcutá. No ano seguinte, em 1980, o prêmio veio para a América Latina, para o jovem escultor e arquiteto, músico e pintor, Adolfo Pérez Esquivel (1931), fundador do SERPAJ (Servicio de Justicia y Paz), em razão de sua corajosa e intransigente defesa dos direitos humanos, em oposição ao regime militar argentino que, nos anos de chumbo da ditadura, foi responsável por mais de 30.000 pessoas desaparecidas.

Em 1984, foi a vez de o primeiro arcebispo anglicano negro da África do Sul, Desmond Tutu, receber o Nobel pela sua luta em favor dos direitos humanos e civis da maioria negra, contra a discri-mi-na-ção racial.

O Dalai Lama, chefe religioso do budismo Tibetano, nascido em 1935, recebeu o Nobel da Paz, em 1989, pela sua incansável campanha não violenta de denúncia contra a ocupação política e militar do seu país, por parte da China. Em 1992, a catequista da diocese do Quiche guatemalteco e ativista dos direitos indígenas, Rigoberta Menchú, recebeu o Nobel da Paz. Em 1996, o Nobel da Paz foi conferido ao bispo católico de Dili no Timor Leste, Dom Carlos Filipe Xime-nes Belo, por sua luta não-violenta em favor da independência do Timor Leste.

Em 1998, o Nobel foi conferido a John Hume, líder católico da Irlanda do Norte e a David Trimble, líder protestante do Ulster, pelo acordo de paz, colocando fim a 30 anos de guerra civil na Irlanda do Norte.

Em 2000, o prêmio Nobel foi para o militante cristão e ativista dos direitos humanos e civis na Coréia do Sul, Kim Dae Jung, que se opôs às sucessivas ditaduras de partido único que dirigiram a Coréia, desde 1954. Tornando-se presidente do seu país, Kim empenhou-se também na reconciliação entre as duas Coréias, separadas desde o armistício que se seguiu à guerra de 1950 a 1953. Foi o primeiro presidente a encontrar-se com seu colega do norte, King Jong II, e a abrir as fronteiras para que famílias, de ambos os lados, separadas desde a guerra, pudessem se reencontrar.

Outras pessoas, sem terem recebido o prêmio Nobel, o mereceram pelo exemplo de suas vidas e de seu combate não-violento pela Justiça e pela Paz, tal como o Mahatma Ghandi na Índia, na sua busca incessante de reconciliação entre os hindus e muçulmanos.

Dos budistas no Japão, Dom Paulo Evaristo Arns recebeu, em Tóquio, o 11 º Prêmio Niwano da Paz (11-05-1994), pelos seus esforços em favor dos direitos humanos e do diálogo entre as religiões para o estabelecimento da justiça.

Conclusão

Podemos ver com todos estes testemunhos representando correntes e movimentos teológicos e políticos, nas várias religiões, que a busca da paz, da compaixão, do perdão e da solidariedade forma uma sólida e antiga tradição espiritual e ética. Entre muitas dessas religiões tem havido um diálogo consistente, aberto também a correntes humanistas inclusive agnósticas ou atéias, para superar preconceitos atávicos, ignorâncias mútuas e estabelecer plataformas de cooperação e respeito, para o bem da humanidade.

 

José Oscar BEOZZO

São Paulo, SP, Brasil