Os instrumentos maiores da politica
Os instrumentos maiores da politica
Chico Whitaker
Na Campanha da Fraternidade de 1996, da Conferencia dos Bispos do Brasil, sobre Fraternidade e Política, o Cardeal Arns, de São Paulo, dizia: «a pior forma de fazer política é não fazer política». Era a sua resposta a quem questionava a Igreja sobre essa «intromissão» num terreno que não seria o seu, por considerarem que «religião e política não se misturam».
Seu raciocínio era direto: numa sociedade injusta, não participar da política é deixar que as coisas fiquem como estão, ou seja, na prática, tomar o partido de quem deseja que a injustiça continue.
Minha geração de jovens militantes cristãos, nos anos 50, já ouvia o teólogo francês L. J. Lebret dizer que a omissão, diante da miséria e da opressão, é o pecado mais grave, a ofensa mais dura que podemos fazer a Deus-amor.
É certo que entrar na política assusta. O «mundo da política» parece estar reservado a profissionais dessa atividade. Além disso, o que mais vemos hoje nesse «mundo» é interesse pessoal, carreirismos, vaidades, corrupção. Embora haja também muita gente boa lá dentro, a impressão que nos fica é que nenhum político está de fato preocupado com o que deve ser feito para melhorar as coisas. Como se pensassem somente neles mesmos, ou em fazer negócios aproveitando-se do poder que conquistaram.
Mas precisamos considerar que política não é algo que tem que ser tratado somente pelos políticos. E nem mesmo somente pelos partidos. Durante muito tempo nos passaram idéias erradas sobre isso. Por exemplo, a de que para participar da política é preciso entrar em partidos. Isso também assusta muita gente, afastando-os da política, porque nem partidos parecem se salvar, na luta pelo poder.
Sabemos todos que votar é um direito político básico numa democracia, a ser exercido por todos os cidadãos. Escolher prefeitos, governadores, presidentes da República, parlamentares, é mais do que um direito: é também um dever, porque precisamos assumir coletivamente nossos destinos. E para votar não precisamos estar filiados a partidos.
Além disso, não basta exercer o direito e o dever de votar. Depois, é preciso acompanhar, fiscalizar, até ajudar quem elegemos. Faremos mais eficazmente esse controle se nos organizarmos. Mas para isso também não precisamos entrar em partidos. E até é melhor organizar-se fora de partidos, porque se pode ver as coisas mais livremente, e controlar também os próprios partidos, nos quais existem igualmente enormes distorções. Estão também aumentando as possibilidades de participação nas próprias decisões do governo - sempre sem necessidade de entrar em partidos - como por exemplo nos diferentes tipos de conselhos de cidadãos que vão sendo criados.
Precisamos portanto nos libertar dessa idéia de que só podemos participar da política dentro de partidos.
Por isso mesmo cresce hoje no mundo um outro ator político, chamado de «sociedade civil». É o conjunto de organizações que lutam por direitos, ou para pressionar os governantes, ou para fazer tudo que pode ser feito, pelo bem da coletividade, sem esperar pelos governos. A «sociedade civil» vem ganhando cada vez mais visibilidade especialmente depois que começaram a se espalhar pelo Planeta, a partir de 2001, os espaços de encontro do Fórum Social Mundial, cujos participantes afirmam que «um outro mundo é possível».
Um dos bons resultados desses encontros tem sido o aumento da articulação entre as organizações da sociedade civil, que podem ter muita força – para resistir ao uso abusivo do poder, ou para fazer pressão política, por exemplo.
Pode-se, portanto, fazer política - sem necessariamente entrar em partidos - associando-se aos esforços, campanhas, iniciativas nascidas na sociedade civil.
Mas muitos não querem saber de política porque acham que ela suja as mãos: tomar o poder é uma expressão usada para dizer que se tomou o governo, e deste as mãos nem sempre saem limpas. Esta é no entanto outra idéia de que precisamos nos libertar.
Todos temos algum tipo de poder. Nos governos em geral e no mundo econômico ele se concentra bastante. Mas também o temos em casa, na escola, na igreja: para reagir, como pudermos, mas também para mandar, quando controlamos algum recurso de que outros dependem - dinheiro, bens, conhecimentos, capacidade de agir. O problema surge pela maneira com que usamos nosso poder sobre os recursos que controlamos.
De fato, ele pode ser usado tanto para dominar como para servir. Quem o usa para dominar mantém a dependência dos que precisam dos recursos que controla. Como o padre que deixa os fiéis na dependência do que ele diga que está certo ou errado, na maneira de agir ou na própria compreensão da Bíblia. Ou como os professores que somente transmitem informações. Ou como os pais que deixam seus filhos continuarem sempre infantis, sem capacidade de discernimento ou de ganhar a própria vida. Ou como os governos que mantêm os pobres submissos à espera de sua ajuda. Quem age assim, concentra cada vez mais poder, podendo dominar - e até explorar - quem dele depende.
Quem usa seu poder para servir faz todo o contrário disso: ajuda quem dele depende a se tornar autônomo, para ganhar a vida, compreender e saber mais coisas, tomar decisões, tornar-se adulto, votar, protestar quando alguma injustiça for praticada, controlar quem tenha sido eleito no bairro, na cidade, no país.
Mas o aluno poderá crescer mais que o professor, o fiel ficará mais independente, o filho ou filha conseguirão decidir sozinhos como adultos, o governo poderá se ver diante de cidadãos informados e exigentes. Por isso muitos têm medo de exercer o poder-serviço. Acreditam que perderão seu poder.
Na verdade, no entanto, o poder-serviço dá lugar ao aparecimento de outro poder, que é muito maior: o poder conjunto exercido co-responsavelmente por todos, na autonomia de cada um. O poder dominação se isola. Seus pés são de barro, e um dia ele desmorona. O poder conjunto, ao contrário, é sólido e permanente, porque se assenta no poder compartilhado de todos.
Esse é o tipo de poder que nos é proposto pelo evangelho. Se for assim exercido como serviço nos partidos, nos governos, na política, ele não suja as mãos. Pelo contrário, as ilumina, abrindo caminhos para a solução de nossos problemas, juntando os esforços e as capacidades de todos os cidadãos.
Considerando as várias categorias de cidadãos que existem na América Latina, temos ainda muito a caminhar rumo ao pleno exercício do poder-serviço.
Temos primeiro os meio-cidadãos, ou cidadãos pela metade. Têm todos os direitos, mas nem sabem que os têm. Possivelmente constituem, na América Latina, a maioria da população. Exercem o poder de que dispõem somente para sobreviver. É preciso torná-los conscientes de seus direitos.
Em segundo lugar estão os cidadãos passivos: sabem que têm direitos mas esperam passivamente que sejam respeitados, ou que caia do céu tudo a que têm direito. Seu número é também muito grande em nosso continente. O poder dominante os mantém anestesiados por espetáculos e ilusões. Eles precisam acordar para a necessidade de lutarem pelos seus direitos, organizando-se para saírem do isolamento.
Em terceiro lugar aparecem os cidadãos ativos: já perceberam tudo isso e lutam pelos seus direitos em associações de bairro, de pais e mestres, em organizações de consumidores. Lutam por terra, por salários e trabalho decentes, por casa, por alimentação suficiente, por qualidade de vida, por não serem discriminados por suas diferenças, para eleger parlamentares que façam leis que assegurem o respeito a esses direitos. Infelizmente eles não são tantos assim, na nossa América Latina. Quantos de nossos trabalhadores estão, por exemplo, sindicalizados? É preciso que se tornem cada vez mais numerosos e mais fortes.
A quarta categoria de cidadãos é constituída por aqueles que lutam pelos seus direitos mas também pelos direitos dos outros. Poderíamos chamá-los de cidadãos ativos e solidários. São os que procuram participar mais plenamente da política.
Dentro de partidos, lutam para que eles não sejam controlados por aproveitadores e corruptos, sejam coerentes com seus princípios, sem alianças espúrias, apresentem propostas sérias e não promessas vãs em suas campanhas eleitorais, não tentem comprar votos de eleitores. Dentro e fora de partidos, esses cidadãos se associam a mobilizações por direitos desrespeitados ou para que se proteja o meio ambiente, para que a atividade econômica não leve à acumulação de riquezas nas mãos de poucos em vez do atendimento das necessidades de todos, para que os conflitos sejam resolvidos pelo diálogo e não pela guerra ou pela opressão.
Cidadãos ativos e solidários entram na política para lutar por um mundo melhor, ao mesmo tempo em que procuram se transformar a si mesmos, interiormente, para serem capazes de exercer, onde estiverem, o mais possível, seu poder como um serviço.
Chico Whitaker
São Paulo